Sem provas, cabeleireiro está preso há 1 ano na Grande São Paulo

Sidney Vieira foi citado em morte por homem que atribui confissão a tortura

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Brasília e São Paulo

O cabeleireiro Sidney Sylvestre Vieira, 30, foi preso em julho de 2018, acusado de homicídio por um homem que ele disse nunca ter visto. Meses depois, o mesmo homem negou conhecer os autores do crime e disse ter sido agredido por policiais em seu depoimento.

Indiferente ao recuo, o Ministério Público de São Paulo pediu à Justiça para manter Vieira preso, o que foi concedido. Há quase um ano, sem nenhum indício além do depoimento desmentido, Vieira divide uma cela para nove pessoas com 31 presos em Itapecerica da Serra (SP).

“O inquérito foi muito mal realizado. Foram métodos de investigação baseados em confissões depois negadas, em vez de provas científicas e irrefutáveis como as que pretendemos apresentar para libertar Sidney”, disse seu advogado, Thiago Gomes Anastácio, que em março assumiu o caso pro bono (sem remuneração).

Quatro mulheres e duas crianças posam ao lado de um cartaz grande com uma foto do cabeleireiro abraçado a uma mulher
Familiares e amigos de Sidney Sylvestre Vieira, que está preso há quase um ano sem prova nenhuma - Marlene Bergamo/Folhapress

O inferno do cabeleireiro, que tem quatro filhos e nenhum antecedente criminal, começou em 19 de novembro de 2017 em um episódio provocado, conforme a polícia, por outra identificação errada originada pelo mesmo homem que acusou Vieira e depois voltou atrás.

Naquele dia, segundo testemunhas, o marceneiro Rubens Henrique Pungirum, 32, sequestrou o professor aposentado Miguel Elias, 74, em Itapecerica, colocou-o no porta-malas de um carro e o levou para a margem de uma rodovia, onde o espancou. Elias foi achado pela polícia e levado a um hospital, onde morreria em 4 de dezembro.

À época, a vítima foi ouvida duas vezes pela polícia. Contou ter sido sequestrada por Pungirum e por um desconhecido. O marceneiro o acusava de ter estuprado sua filha de 11 anos. Elias negou o crime e disse que nem conhecia a criança. Somente após sua morte ficou pronto o exame de corpo de delito, comprovando não ter havido estupro.

Pungirum disse à polícia que sua filha reconhecera Elias. A investigação, porém, apontou incongruências na versão da menina, como uma tatuagem no braço direito do agressor, possivelmente uma caveira. Elias não tinha tatuagem.

Em maio de 2018, Pungirum foi preso. No seu depoimento, cinco meses após o espancamento de Elias, surgiu o nome “Sidnei”. Elias disse duas vezes que apenas duas pessoas o agrediram. Mas Pungirum mencionou uma terceira: “Sidnei” seria “um conhecido”, além de um “Beto de Tal”.

A divergência sobre o número de agressores nunca foi esclarecida pela polícia nem pelo MP. No início, os dois órgãos falavam em dois homens, depois passaram a falar em trio.

Fora o primeiro depoimento do marceneiro, nenhum outro indício contra Vieira foi adicionado à investigação. Os quatro promotores que atuaram no caso defenderam a prisão de Vieira mesmo sem obter provas materiais que pudessem confirmar ou desmentir a acusação de Pungirum.

Não havia, por exemplo, quebra de sigilo telefônico nem imagens de segurança que provassem que o marceneiro telefonou para Vieira naquele dia ou que o cabeleireiro esteve na região do crime. 

Pungirum afirmou ter pego Vieira em Ibiúna e o deixado em Cotia, mas o cabeleireiro mora e trabalha em Embu das Artes, também na Grande SP.

O cabeleireiro foi preso em julho de 2018. Ele disse que estava em sua casa no dia do espancamento e que não conhecia Pungirum. Seu advogado pediu às operadoras de telefonia dados do celular para provar que Vieira e o marceneiro não se falaram no dia. Thiago Anastácio levará o caso ao Tribunal de Justiça de SP.

Em abril, ouvido pela Justiça, Pungirum recuou das declarações e disse que não sabe quem espancou Elias. Ouviu falar que o idoso foi “linchado”. “Na delegacia eles me levaram para o corpo de delito três horas da tarde. Sete da noite eles me levaram lá pra cima, me bateram. Eles sim deveriam assinar uma [confissão de] tortura”, disse Pungirum.

Procurada pela Folha, a Promotoria não respondeu a uma série de perguntas. Informou que a denúncia “está lastreada em indícios de crime e de autoria compilados na investigação”, sem citar quais. 

“O Ministério Público trabalha agora para que a prova indiciária seja corroborada sob o crivo do contraditório, observadas as demais garantias do devido processo legal”, declarou o órgão. “Qualquer comentário neste momento a respeito do contexto probatório poderá prejudicar a instrução do feito.” 

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que “o caso de tortura foi investigado pela Delegacia de Itapecerica da Serra, que indiciou dois homens pelo crime e relatou o inquérito em maio de 2018 ao Poder Judiciário”.

Família tenta provar inocência de cabeleireiro

A diarista Eliana Silvestre, 53, imaginou ter vivido, em novembro de 2003, o pior momento de sua vida. Grávida de seis meses do oitavo filho, viu o marido ser morto durante uma tentativa de assalto.

Há um ano, porém, ela enfrenta algo que considera pior do que a viuvez, a fome e tudo que passou desde então.

“Foi uma dor muito grande [perder o marido], mas nada perto dessa que estou sentindo agora: ver um filho preso injustamente. Clamar por Justiça e ninguém escutar.”

Eliana é mãe do cabeleireiro Sidney Silvestre Vieira, 30, preso há um ano sob suspeita de ter torturado e matado um homem em Itaparica da Serra, sem provas.

“Quanto mais ele, que não tem coragem de machucar nem um cachorro”, diz a mãe. “Não há um dia em que eu não chore. Um pesadelo sem fim.”

O pesadelo da família teve início na manhã de 13 de julho de 2018 e chegou com cara de engano. Os policiais foram à casa de Sidney em busca de um “José Carlos”.

Bebê segura porta-retrato perto do rosto, com uma foto de Sidney e a ex-mulher se beijando
Lorenzo, filho de Sidney Sylvestre Vieira, com uma foto dos pais - Marlene Bergamo/Folhapress

O cabeleireiro achou que fosse outra reclamação da ex-mulher sobre atraso na pensão alimentícia dos dois filhos que tem com ela —em 2013, ele ficara preso 30 dias por esse motivo, seu único problema com a Justiça até então.

“Quando o policial disse que ele estava sendo procurado por tortura e assassinato, ele respondeu: ‘É um engano. Nem precisa me algemar’. Ele foi para delegacia se explicar, mas não voltou”, diz a irmã Liliane, 26. “Falaram depois que ele estava foragido. Como, se nunca foi procurado?”

Sidney vem de uma família numerosa de operários e prestadores de serviço de Embu das Artes na qual se começa a trabalhar cedo. Ele começou aos 13, e, ganhando até R$ 15 por corte, abandonou os estudos na sexta série. 

Teve quatro filhos com três mulheres. Trabalhava todos os dias e nunca teve ligação com Rubens Pungirum, suspeito de espancar e matar o aposentado Miguel Elias, diz a família. “Para saber a cara deles, precisamos pesquisar nas redes sociais”, afirma a irmã.

A família tem tentado remontar os passos de Sidney na noite de domingo, 19 de novembro de 2017, quando ocorreu o crime imputado a ele. Há dificuldade porque, entre o crime e a prisão dele, há um intervalo de sete meses.

Um dos indícios apontados pelos parentes é uma foto curtida em uma rede social por Sidney. “Como ele nunca tinha crédito no celular, ele só conseguia acessar as redes sociais quando estava na casa dele ou no salão”, diz a irmã.

A família também relata dificuldade para compreender como funciona a Justiça criminal.

“Eu estive no fórum para tentar falar com a juíza, explicar porque meu filho é inocente, mas ela nem me recebeu. Um funcionário pediu que fizesse um pedido por escrito e protocolasse no processo”, disse Eliana, que é analfabeta.

Enquanto Sidney continua na prisão, a família vai acumulando traumas e dívidas.

O próprio Sidney teve de devolver o imóvel onde instalou seu salão de cabeleireiro ao dono por não conseguir honrar os aluguéis. Precisou vender o carro e vê novas dívidas se acumularem com a pensão alimentícia dos filhos.

Entre uma dúvida e outra, Eliana especula. “Se eu tivesse dinheiro, tenho certeza de que ele não estaria preso.”

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