Cerco à cracolândia, no centro de SP, recrudesce

Usuários de drogas e moradores relatam acossamento policial; unidades de atendimento são relocadas para longe

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Visão aérea da aglomeração de usuários de drogas na cracolândia

O "fluxo" de usuários de drogas na cracolândia, na al. Dino Bueno (região central de São Paulo) Danilo Verpa/Folhapress

São Paulo

Usuários de drogas que frequentam a região da cracolândia, no centro de São Paulo, relatam avanço da pressão para deixarem o local. 

Somados às recentes obras urbanas na área e à transferência de unidades de atendimento, os depoimentos ouvidos pela reportagem apontam intensificação da violência policial contra dependentes químicos e moradores de rua.

As afirmações são feitas por moradores, assistentes sociais, urbanistas e ativistas. Tanto a Polícia Militar, do governo João Doria, como a Guarda Civil, sob Bruno Covas (ambos do PSDB), negam qualquer mudança de diretriz na conduta para o quadrilátero.

No dia 22 de agosto, uma operação liderada pelo Denarc (divisão de narcóticos da Polícia Civil) utilizou 560 agentes de segurança para deter 17 suspeitos e apreender 21 kg de drogas na área.

Os relatos do recrudescimento da violência, porém, ocorrem em ações cotidianas como a limpeza das vias onde fica o "fluxo" —a aglomeração de dependentes químicos e moradores de rua—, feita diariamente desde 2017. 

"Batem mesmo, na cara dura. É pro pessoal sair. É isso que eles querem", diz Eduardo Mousinho, morador da região.

Mousinho afirma que a escalada de agressões das últimas semanas é notada sobretudo quando usuários retornam às ruas após a limpeza.

"Dão chute, tomam as mantas, pegam as coisas. Eles já não têm nada e o pouco que têm os caras tomam, nesse frio", diz ele, que é ex-usuário de cocaína e realiza trabalho voluntário com dependentes.

As ações de limpeza ajudaram a desmobilizar a feira de drogas que ocorria na região. Hoje, a montagem das barracas que encobrem o tráfico flutua —a reportagem presenciou vias obstruídas pelo fluxo em dois dias desta semana, e desobstruídas em outros dois.

Desde junho, duas unidades de atendimento social da prefeitura, os Atendes, foram transferidas da região para perto da marginal Tietê, a 2,7 km de distância do fluxo.

No local foi iniciado um serviço híbrido de assistência social e de saúde, batizado de Siat (Serviço Integrado de Acolhimento Terapêutico). O Atende 2, na rua Helvétia, é o serviço remanescente mais próximo e também tem transferência prevista —sem data.

O Siat funciona em três etapas, diz Arthur Guerra, coordenador do programa municipal Redenção, para usuários de crack. A primeira é a abordagem por agentes sociais e de saúde para convencer o usuário a buscar tratamento.

A seguinte é o atendimento na unidade próxima à marginal Tietê, onde é oferecido acolhimento com banho, alimentação, corte de cabelo, atendimento de saúde e pernoite. Na terceira fase, o usuário pode residir por um período em um pensionato em Heliópolis (zona sul) ou na Vila Brasilândia (zona norte). Há ainda uma capacitação.

"O Siat não é a solução mágica para resolver o problema dos usuários de crack, mas é uma tentativa de irmos apertando o cerco para ter eficiência no tratamento", diz Guerra.

De acordo com Dartiu Xavier da Silveira, que coordena há três décadas o serviço de atendimento à dependência química da Escola Paulista de Medicina, distanciar o atendimento mina o tratamento. 

"As experiências bem-sucedidas com população em situação de rua dizem que você tem que se aproximar ao máximo dela. [A transferência] desmotiva a procura", afirma.

Para Carmen Lopes, ex-assistente social da prefeitura e hoje no coletivo Tem Sentimento, que oferece oficinas de costura para a população vulnerável no centro, a mudança "desestrutura a pessoa [que já era atendida no local]".

Guerra, contudo, afirma que a iniciativa atende melhor aos dependentes. "As tentativas de auxiliar essas pessoas no centro foram infrutíferas, pois a oferta de drogas está muito mais presente", diz. "Estamos oferecendo mais condições em outros equipamentos."

Tanto Doria quanto Covas já justificaram as transferências. 

Para o governador, o deslocamento gradual é parte do processo "também para que o atendimento do Caps [Centros de Atenção Psicossocial] seja feito". Covas, por sua vez, afirma que "não há obrigatoriedade, ordem de expulsão ou qualquer tipo de carregamento pela prefeitura". "A gente não manda as pessoas para lá ou para cá. A gente orienta."

A cracolândia passa desde 2017 por uma transformação. Em maio daquele ano, uma operação policial do governo Geraldo Alckmin (PSDB) desobstruiu a feira de drogas na alameda Dino Bueno —e o então prefeito Doria declarou que a cracolândia acabara.

Na esteira, as gestões tucanas lançaram um projeto de revitalização da Luz e passaram a desapropriar imóveis.

Cinco prédios, parte de uma parceria público-privada de habitação popular, foram erguidos e receberam moradores. Outros estão previstos. 

No último dia 13, teve início também a obra da nova sede do hospital Pérola Byington.

Para o arquiteto e urbanista do Felipe Moreira, que trabalha com políticas urbanas no Instituto Pólis, lotes desapropriados poderiam virar habitação para dependentes em tratamento. "É possível resolver o problema sem remover as pessoas. Mas há interesse em que a área seja valorizada, um processo de gentrificação." 

Ativistas de direitos humanos e assistentes sociais dizem que a pulverização dos dependentes químicos os deixará ainda mais desamparados. 

Para 2020, a prefeitura tem a meta de diminuir em 80% os usuários de drogas na região. Segundo Maria Angélica Comis, vice-presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool, “a mudança dos serviços é basicamente uma estratégia para atingir essa meta.”


AÇÕES RECENTES NA CRACOLÂNDIA

Concentração de usuários de drogas no centro de São Paulo existe desde meados dos anos 1990

maio de 2017Polícia realiza megaoperação para desmantelar a feira livre de drogas que operava no local. Começam desapropriações e demolições em terrenos da região

junho de 2017Usuários voltam para perto do local antigo. Prefeitura de São Paulo institui rotina diária de limpeza, e proíbe a montagem de barracas

junho de 2018  Entregues, prédios populares começam a receber moradores, que relatam insegurança

setembro de 2018 Prefeitura estuda plano para transferir atendimento e atrair usuários para a região da marginal Tietê

maio de 2019 Prefeitura publica lei com política municipal para álcool e drogas

junho de 2019 Unidades municipais de atendimento na região começam a ser transferidas para próximo da marginal Tietê

agosto de 2019 Governo dá início a obras do hospital Pérola Byington. Polícia Civil realiza nova operação contra o tráfico. Outra unidade de atendimento é transferida. Frequentadores relatam aumento de repressão policial. Fluxo de usuários volta à al. Dino Bueno, com barracas

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