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'Foi o pior júri da minha vida', diz a advogada que ajudou a condenar o assassino do marido e do filho

Elizabeth Diniz Martins foi assistente de acusação do crime ocorrido em 2016

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Cuiabá | BBC News Brasil

A advogada Elizabeth Diniz Martins atuou em diversos casos ao longo dos 50 anos de carreira, entre eles a defesa de presos políticos durante a ditadura militar.

"Em um dos julgamentos, havia uma metralhadora encostada em mim", relembra. Também atuou na defesa do hoje presidente Jair Bolsonaro (PSL) e ajudou a inocentá-lo em um processo que ele respondia na Justiça Militar no fim da década de 1980.

Mas os casos do passado não se comparam ao júri popular do qual a advogada participou como assistente de acusação —função na qual auxiliou o promotor de Justiça— no último dia 6.

Aos 77 anos, Elizabeth se viu em meio ao julgamento mais difícil de sua vida: o do assassino confesso do marido e do filho caçula dela.

Os procuradores estaduais Saint-Clair Martins e Saint-Clair Diniz, respectivamente pai e filho, foram mortos a tiros em setembro de 2016.

Os dois estavam em uma fazenda deles, no município mato-grossense de Vila Rica, a 1.276 km de Cuiabá, quando foram alvos de disparos feitos por um funcionário da família.

Ao ser preso, dias depois do crime, o então gerente da fazenda, José Bonfim Alves, confessou os assassinatos à polícia.

Logo que os trâmites jurídicos do caso tiveram início, Elizabeth, ainda abalada, avisou que faria parte da acusação.

A decisão da advogada preocupou amigos e parentes. "Muitas pessoas se ofereceram para que fossem assistentes de acusação em meu lugar, por achar que eu não conseguiria. Mas eu disse que precisava fazer aquilo, porque era o meu papel naquele momento", conta Elizabeth à BBC News Brasil.

Uma pessoa interessada em que a justiça seja feita pode ser habilitar como assistente de acusação e a Justiça define se acolhe ou não o pedido.

Enquanto analisava o processo, ela se emocionava com frequência. "Eu sempre procurava pensar que era outro cliente. Mas quando chegava a algum trecho que mencionava os nomes deles, eu não aguentava e chorava", diz.

Ela lia os documentos da ação judicial sozinha, para que os parentes não a vissem chorar. "Fazia isso sempre durante a noite, em casa, quando ninguém estava por perto."

 
Elizabeth, o marido e o caçula: pai e filho, foram mortos a tiros em setembro de 2016
Elizabeth, o marido e o caçula: pai e filho, foram mortos a tiros em setembro de 2016 - Arquivo pessoal

Carreira na advocacia

A busca por Justiça ao marido e ao filho trazem à memória de Elizabeth o período em que ela atuou defendendo mães ou mulheres de presos políticos durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985.

No período, a advogada conheceu histórias de mulheres que passaram anos em busca de desaparecidos - muitas acabaram descobrindo que os entes queridos haviam sido assassinados pelo regime. 

Ela relata que até a promulgação da Lei da Anistia, em 1979, defendia diariamente pessoas que eram vítimas da violência da ditadura.

Em um dos casos à época, conheceu Saint-Clair, que também estava defendendo presos políticos. Logo se apaixonaram, engataram um namoro e se mudaram para Brasília. O casal viveria na capital brasileira em grande parte dos 45 anos de casados, comemorados em 2016.

Na redemocratização, Elizabeth também atuou na defesa de militares que eram alvos da Justiça. Em 1988, ela defendeu o então capitão do Exército Jair Bolsonaro, acusado de elaborar um plano terrorista para explodir bombas em unidades militares do Rio de Janeiro.

Ele foi absolvido no Superior Tribunal Militar (STM) por nove votos a quatro. "Ninguém acreditava, mas conseguimos que ele fosse absolvido", declara. 

As propriedades rurais

Enquanto a Elizabeth estava focada na carreira de advogada, Saint-Clair se dividia entre o meio jurídico e uma outra paixão: as fazendas.

O advogado, que durante décadas foi procurador no Distrito Federal, passou a infância em uma propriedade rural e sempre se declarou apaixonado pelo campo.

Ele tinha propriedades rurais em cidades de Minas Gerais e sonhava em comprar uma fazenda em Mato Grosso, por considerar uma região próspera. Ele concretizou o sonho em 2007, quando foi ao Estado para cuidar de um processo e soube de uma fazenda à venda em Vila Rica.

O primeiro empregado que ele contratou para trabalhar ali foi José Bonfim Alves, indicado por um conhecido dele. "O Bonfim parecia ser de inteira confiança e trabalhava direitinho", diz Elizabeth.

Saint-Clair administrava a fazenda em Vila Rica a distância. Ele ia para a propriedade rural, em média, a cada três meses.

O filho caçula, Saint-Clair Diniz, além de ter o mesmo nome que o pai e também ser procurador, também tinha em comum o amor pelo campo. Juntos, os dois administravam a propriedade rural da família em Mato Grosso.

Elizabeth e o marido têm outros dois filhos, Bruno e Raquel, hoje com 45 e 42 anos. O caçula, porém, era o mais ligado às fazendas do pai. Casado e pai de três filhos, Saint-Clair Diniz era procurador do Rio de Janeiro e representava o Estado em Brasília, onde morava com a família.

Aposentado como procurador do Distrito Federal, Saint-Clair Martins planejava transferir toda a administração da fazenda em Vila Rica ao caçula.

O crime

No início de setembro de 2016, pai e filho foram à propriedade rural em Mato Grosso. No local, foram recebidos por Bonfim, como de costume. Saint-Clair Martins e o filho iriam separar o gado da fazenda quando notaram que das mais de mil cabeças compradas nos últimos anos, havia menos de 100 no local.

De acordo com denúncia do Ministério Público de Mato Grosso, os procuradores estranharam o sumiço de grande parte do gado.

"Testemunhas disseram que saíram vários caminhões com gado da fazenda, enquanto meu marido e meu filho não estavam na propriedade", diz Elizabeth. Bonfim teria ficado amedrontado com a possibilidade de ser descoberto.

Em 9 de setembro de 2016, o gerente da fazenda chamou Saint-Clair Martins para um passeio a cavalo, na manhã seguinte.

O principal objetivo seria mostrar que ainda havia mais de mil cabeças de gado. Bonfim e o patrão foram a cerca de 1,3 km da sede da propriedade. No local afastado, conforme a denúncia, disparou três tiros nas costas da vítima.

Bonfim retornou à sede da fazenda e chamou Saint-Clair Diniz. Ele disse ao procurador que o pai dele havia passado mal e caído em meio ao mato, em uma área afastada, e pediu ajuda para resgatar o idoso.

"Quando o meu filho chegou ao local e se debruçou sobre o pai, o Bonfim deu três tiros nele. Um dos disparos atingiu a cabeça", relata Elizabeth.

As vítimas morreram no local do crime. Durante dias, o procurador aposentado, de 78 anos, e o filho, 38, foram considerados desaparecidos.

O gerente fugiu quando começaram as buscas pelos proprietários da fazenda e foi considerado suspeito pela polícia.

Quatro dias após o crime, Bonfim foi localizado em Colinas do Tocantins (TO), onde foi preso em flagrante por porte ilegal de arma e confessou ter assassinado os procuradores.

"Ele confessou friamente. Estava calmamente sentado, tomando cerveja e fugindo. Disse que iria para a Bahia. Quando os policiais falaram que ele era acusado de dois homicídios, ele confessou friamente e disse que matou porque estava com medo de ser descoberto (sobre as vendas do gado dos patrões)", diz Elizabeth.

Até os corpos serem localizados, Elizabeth acreditava que os dois tinham sido alvos de sequestro e aguardava um pedido de resgate. A espera terminou quase uma semana depois.

"O meu filho chegou no meu escritório e me disse: 'mamãe, se prepara porque a notícia não é boa'. Ele me contou que o Bonfim matou o pai e o irmão. Eu estava sentada e desmontei. Andei pelo escritório incrédula. Não conseguia acreditar naquilo. Fiquei totalmente aérea. Dali até o enterro, não lembro de mais nada."

 
A advogada Elizabeth Diniz Martins atuou em diversos casos ao longo dos 50 anos de carreira, entre eles a defesa de presos políticos durante a ditadura militar
A advogada Elizabeth Diniz Martins atuou em diversos casos ao longo dos 50 anos de carreira, entre eles a defesa de presos políticos durante a ditadura militar - Tribunal de Justiça do Mato Grosso

Assistente de acusação

Desde a descoberta do crime, a condenação de Bonfim se tornou um dos principais objetivos na vida de Elizabeth e seus familiares.

Ela conta que nunca quis que o assassino fosse punido por meio de agressão ou outras formas que não fossem relacionadas ao sistema judiciário.

"Pedi que meus familiares entendessem que não deveríamos pensar em violência contra ele. Meus filhos são muito obedientes e me respeitaram. Não são pessoas revoltadas. Sempre fomos contra a violência. Eu disse a eles que faríamos a Justiça dos homens. E deixa que Deus faz a Justiça dele depois."

Ela conta que se tornou assistente de acusação porque queria participar ativamente da busca por Justiça.

Viúva de Saint-Clair Diniz, a juíza federal Maria Cecília de Marco Rocha apoiou a decisão da sogra. "A dona Beth teve e tem minha inteira confiança para o desempenho desse papel tão importante. Nesse caso específico, o amor de esposa e de mãe foi vetor da atuação dela", relata à BBC News Brasil.

Logo que recebeu o processo do caso, Elizabeth se deparou com a parte que considera uma das mais difíceis: as imagens dos corpos do marido e do filho assassinados. "Sou católica e muito ligada à religião. Precisei de muita fé para ser forte nesse processo", diz.

A filha da advogada via a mãe trabalhando durante a noite e questionava se era o processo do pai e do irmão. "Eu sempre dizia que eram outros nomes. Não queria que meus filhos ou netos tivessem acesso àquilo, para que não ficassem abalados. Eu falava que o processo do meu marido e do meu filho estava no escritório", relembra.

A condenação

A luta por Justiça teve o episódio mais importante no júri popular. Quase três anos após o crime, Bonfim, hoje com 45 anos, foi julgado na comarca de Vila Rica.

Para um time de sete jurados, Elizabeth defendeu a condenação de Bonfim. Na plateia, parentes e amigos acompanhavam atentos ao discurso da advogada. Em muitos momentos, ela se emocionou. "Respirei fundo para não chorar diante do júri", revela.

"Esse foi o pior júri. Nada supera. Não tem comparação." Quando discursou no júri, Elizabeth procurou poupar a família das imagens dos entes queridos mortos. "Quis mostrar as fotos somente para os jurados. Não queria que a plateia, onde estavam meus filhos e minha nora, vissem no que meu marido e meu filho foram transformados."

O júri popular durou cerca de 15 horas. Bonfim chegou a pedir desculpas à família das vítimas. "Não perdoo nunca. Nem eu, nem meus filhos. Não sou tão boa assim com esse negócio de perdão. Se é que perdoar isso seria bondade", afirma Elizabeth.

Bonfim, que está preso desde setembro de 2016, foi condenado a 47 anos e três meses de reclusão e a um ano e seis meses de detenção.

Conforme a legislação, a reclusão começa no regime fechado, pode evoluir para o semiaberto, e, posteriormente, aberto. Já a detenção é mais branda, começa no semiaberto e depois para o aberto.

Ao fim do júri, Elizabeth conta que teve o sentimento de dever cumprido. "Fiquei aliviada, mas muito triste. Não estávamos felizes, porque meu marido e o meu filho caçula não estavam ali."

Ela comenta que não planeja mais participar de júri popular em sua carreira. "É muito pesado. Quero que esse tenha sido o último. Acho que não consigo fazer outro."

A advogada e os familiares avaliam a possibilidade de recorrer da decisão, para pedir que a condenação aplicada a Bonfim seja maior.

"Eu acho que poderia ser mais de 50 anos, porque foram dois homicídios. Ainda não decidimos se vamos recorrer. A gente ainda está muito cansado", conta a advogada, que confessa chorar quase diariamente de saudade do filho e do marido.

A defesa de Bonfim deve recorrer da decisão na Justiça, para tentar reduzir a pena aplicada a ele.

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