Descrição de chapéu Rio de Janeiro

No sequestro da ponte, redes sociais hiperbolizam espetacularização do ônibus 174

Curiosos se aglomeraram para acompanhar a ação policial e ambulantes venderam lanches

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Rio de Janeiro

Uma das imagens que ficarão deste 20 de agosto de 2019 é a do governador do Rio, Wilson Witzel, aquele que sugere à polícia "mirar na cabecinha e… fogo", celebrando feito gol em Copa do Mundo o desfecho letal do sequestro de um ônibus na ponte Rio-Niterói.

Curiosos se aglomeraram para acompanhar a ação policial, que terminou com a morte do sequestrador, baleado por um "sniper". Vibraram ao ouvir sons de tiro, embora àquela altura fosse impossível saber o que ocorrera, inclusive se algum refém fora atingido.

 
O governador do Rio, Wilson Witzel, ao desembarcar de helicóptero na ponte Rio-Niterói
O governador do Rio, Wilson Witzel, ao desembarcar de helicóptero na ponte Rio-Niterói - Antonio Lacerda/EFE

As redes sociais adotaram tom de galhofa para descrever as cenas explícitas de "espírito brasileiro" que tomaram a ponte engarrafada. 

Um homem soltava pipa, outros jogavam altinha. Teve o grupo que sacou um baralho. Um ambulante com senso de oportunidade foi até o local vender coxinha e refrigerante àqueles a quem só restava esperar pelo desafogamento do trânsito. 

Isso representa o Brasil mais que futebol e samba, vibrou a internet. "Quando o mundo acabar só vai sobrar barata e carioca", brincou alguém em rede social.

Willian Augusto da Silva, 20, dizia a passageiros do veículo que capturou nesta terça (20) o porquê daquilo tudo: queria "entrar para a história" e, para tanto, achou que um bom caminho seria reprisar o feito de Sandro do Nascimento, 21, quase duas décadas atrás.

No dia dos namorados de 2000, Sandro, um sobrevivente do massacre da Candelária, manteve reféns em um ônibus da linha 174. Aquele 12 de junho virou um dos episódios mais emblemáticos da recente crônica policial do Rio, não só pelo desfecho trágico (a morte do sequestrador e de uma mulher cativa) mas pela espetacularização que rondou as horas de transmissão ao vivo da situação toda.

O que 2019 tem a nos oferecer é uma versão anabolizada desse circo montado em torno de um crime. 

No último ano do século 20, afinal, nenhuma das redes sociais tão populares hoje havia nascido, e mesmo o primeiro iPhone só viria sete anos depois. Aliás, celulares com câmera (ainda de qualidade nanica) ainda começavam a chegar às lojas internacionais.

Agora, além das câmeras de TV, havia uma legião paramentada com seus aparelhos para registrar todo o entorno do ônibus capturado.

Isso inclui a equipe do governador fluminense, que tratou de postar no Instagram dele uma cena insólita: os passageiros recém-libertos de volta ao ônibus ouvindo Wilson Witzel pregar que "Jesus no coração das pessoas" evitaria uma sociedade com "pessoas que têm um desequilíbrio, não têm amor em si, não tem fé em Deus".

Para o professor da FGV-SP Rafael Alcadipani, especializado em segurança pública, Witzel ajudou a transformar o caso em um espetáculo ao sair de um helicóptero da Polícia Civil balançando os punhos como se fosse jogador marcando o gol da vitória. 

É preciso entender que às vezes há, sim, necessidade de matar quem oferece ameaça ou, no jargão policial, "neutralizar o alvo". Mas uma atitude como a da autoridade máxima do Rio, afirma Alcadipani, "não coloca como protagonista o profissionalismo da polícia e sim a vingança do Estado". O gesto acaba incentivando "que o policial na ponta da linha aja de forma letal", mas se algo der errado é ele que vai ser penalizado, não o governador.

Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima diz que Witzel "soube explorar o episódio e pulou de alegria" em um "momento de baixa por uma série de exageros retóricos". 

Refere-se a falas do governador sobre sua ideia de combate ao crime, desde a morte de inocentes durante operações realizadas em favelas até sugerir que crianças do complexo da Maré podem não ter escrito cartas sobre o medo que sentem da ação policial —o crime organizado, afirmou dias atrás, "é capaz de tudo".  

"A gente não comemora de forma alguma se o resultado for morte, não antes de fazer uma revisão" do que aconteceu, se o sequestrador precisava mesmo ser morto, diz Lima. 

"Foi um modo afoito em louvar uma solução que é sempre extremada. Basta ver quando polícias europeias acabam atirando em eventuais acusados de terrorismo. Não tem nenhum dirigente fazendo louvação na hora."

A reação de Witzel acirra não apenas o bangue-bangue literal. Também dá corda à grita nas redes sociais, que usam essas imagens para contrapor "pseudodefensores de direitos humanos", como o líder do Executivo fluminense gosta de classificar aqueles contrários à sua política de segurança pública, e os entusiastas da linha dura. 

Outro sintoma dos nossos tempos é a propagação em tempo real de informações desencontradas. Elas sempre foram um efeito colateral indesejado de episódios midiáticos como o sequestro de um ônibus.

A facilidade em disseminar fake news, ainda que de forma involuntária, só fez agigantar numa época em que TVs e jornais dividem espaço com "zaps" e afins.

No crime da ponte Rio-Niterói, por exemplo: primeiro falaram que o sobrenome do sequestrador era Nascimento, depois Silva. O burburinho inicial sobre antecedentes criminais dava conta de um estuprador com quilométrica ficha corrida, até verificarem que tinha a ficha limpa (até então). Uma hora Willian era vigilante, outra, ajudante de padeiro. E, se no começo se falava em 37 reféns, agora são 39.  

O sequestrador ameaçou a certa altura espalhar gasolina no ônibus e atear fogo nele. Nunca o fez, mas o circo pegou fogo mesmo assim.

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