Advogada presa por engano vai receber R$ 50 mil do Estado

Alessandra Müller, de Cafelândia (SP), foi detida pela polícia em operação contra facção criminosa em 2016

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Alessandra Andrade Müller dos Santos acordou assustada com o barulho da campainha. Eram cerca de seis horas da manhã. Pelo interfone, alguém anunciou, com voz firme: é a polícia.

Ainda de pijama, sem entender o que estava ocorrendo, abriu a porta da sua residência na pequena Cafelândia, no interior paulista, e viu armas apontadas na sua direção.

A ação fazia parte da Operação Ethos, que naquele dia 22 de novembro de 2016 prendeu 35 advogados em diversas cidades do estado, acusados de envolvimento com a facção PCC. Com acesso às prisões, eles fariam a transmissão de recados entre os criminosos. 

Ao ser informada sobre a acusação, Alessandra, à época com 39 anos, sorriu nervosa. Filha de um policial militar aposentado, com atuação em outras áreas do direito que não a penal, jamais sequer pisara numa penitenciária. 

A advogada Alessandra Muller dos Santos foi presa por engano em uma operação da polícia contra advogados ligados ao PCC. Seu nome foi confundido com o de outra pessoa
A advogada Alessandra Muller dos Santos foi presa por engano em uma operação da polícia contra advogados ligados ao PCC. Seu nome foi confundido com o de outra pessoa - Juliana Lobato - 11.set.2019/Folhapress

Ainda assim, sua casa foi revirada e o celular, apreendido. A advogada teve de se trocar com as portas abertas e mal pôde fazer a higiene bucal. 

Enquanto Pedro Henrique, seu filho pré-adolescente, de 11 anos, chorava num canto com o pai, seguiu em um camburão para uma delegacia de uma cidade vizinha, Lins, onde foi colocada descalça em uma cela com uma mulher acusada de tráfico de drogas. “Entrei em desespero”, diz.

Sua imagem acabou na tela de uma emissora de televisão, relacionada ao Primeiro Comando da Capital como integrante da chamada “sintonia dos gravatas”, a equipe de advogados da facção criminosa.

Oito horas depois, a verdade veio à tona. Alessandra fora presa por engano. Uma outra advogada, de nome semelhante, deveria ter sido o alvo da operação, iniciada em maio de 2015 a partir de documentos apreendidos na Penitenciária de Presidente Venceslau.

A prisão ocorreu unicamente porque o nome “Alessandra Müller” constava de emails trocados entre membros da facção. Não houve investigação posterior nenhuma.

“Um mínimo de cautela dos agentes públicos exigiria a confrontação dos dados da autora antes da prisão”, afirmou o juiz Octavio Santos Antunes, que analisou o caso.

Deslocada de outra cidade para realizar a operação em Cafelândia, a equipe de policiais e promotores que prendeu a advogada não levou em conta nem mesmo os alertas feitos previamente por um delegado e um investigador da região, que a conheciam.

Estranhando a acusação contra Alessandra, o delegado Marcelo Muniz e o investigador Marco Legramandi advertiram os responsáveis pela ação que possivelmente tratava-se de um equívoco, lembrando que ela nem atuava na área criminal.

Alessandra acabou solta, mas continuou vivenciando aquele dia de novembro por meses. Tinha vergonha de sair às ruas de Cafelândia, município de apenas 17 mil pessoas onde todo mundo se conhece. “Achava que sempre alguém estava a me apontar o dedo”, contou à Folha.

Com dificuldades para dormir, passou a tomar antidepressivos. Quando finalmente conseguia, acordava na sequência aos gritos. ”Foram meses terríveis”, afirma.

Seu filho também sofreu, sem entender o que acontecera. “Os policiais não são pessoas de bem?”, perguntava ao pai.

Deixou de frequentar a escola naquele ano e passou a ser vítima de gozação. “A mãe foi presa, cuidado”, diziam na rua. Também tinha muito receio de ficar sozinho em casa.

O trabalho de Alessandra como advogada também foi afetado. Os documentos e computadores apreendidos em seu escritório e residência foram devolvidos somente uma semana depois da prisão.

Potenciais novos clientes, indicados por amigos, a rejeitaram. “O que aconteceu com ela foi um grande absurdo”, considera Marcos da Costa, ex-presidente da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), que em 2017 promoveu um ato em seu desagravo.

Em janeiro do ano passado, Alessandra processou o Estado, cobrando uma indenização por danos morais.

“Minha cliente foi presa sem investigação, apenas porque seu nome constava de uma lista”, diz o advogado Marcos Vinicius Gonçalves Floriano, que a representa. “O caso é um retrato do nosso país, no qual as garantias constitucionais têm sido deixadas de lado em nome de propósitos.”

No processo, a Fazenda Pública defendeu os procedimentos da polícia. “Os agentes públicos agiram no cumprimento do seu dever legal”, disse o órgão.

“O Estado não pode ser responsabilizado por quaisquer investigações que, realizadas, não produzam as provas necessárias.”

De acordo com a argumentação, os agentes públicos não agiram com culpa ou dolo. “Evidentemente que houve um aborrecimento com a instauração do procedimento investigatório, mas era uma medida necessária”, afirma.

“A surpresa no desenrolar da averiguação, que corria em sigilo, era muito importante para o seu êxito, de modo que constatado posteriormente o erro, o inquérito foi arquivado”, disse, no processo. O Tribunal de Justiça não aceitou a alegação do Estado. 

“O referido erro não pode ser considerado justificável”, afirmou o desembargador Magalhães Coelho, relator do processo. “As autoridades atuaram de maneira pouco diligente e apressada, gerando graves constrangimentos.”

Condenado, o Estado terá de pagar uma indenização de R$ 50 mil, valor inferior aos R$ 100 mil solicitados na petição inicial do processo. 

Apesar disso, a advogada afirma que não irá recorrer. “Quero esquecer o sofrimento e recomeçar minha vida”, diz. “Não entrei com o processo por dinheiro, queria apenas o reconhecimento de que fizeram tudo errado.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.