Descrição de chapéu Obituário Marília Fontana Garcia (1950 - 2019)

Mortes: Socióloga, quis informar o público sobre Constituição e democracia

Marília Fontana escreveu volume célebre da coleção Primeiros Passos e cantava para os netos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rafael Fontana Garcia
São Paulo

Marília nasceu na confluência de duas famílias de imigrantes italianos em São Paulo, cresceu num ambiente letrado e construiu uma relação com a língua e a arte tão próxima que esta lhe amparou tanto no trabalho como nas horas de lazer. 

Filha de um professor de português e latim e de uma ceramista e dona de casa, dominou o francês, o italiano e o inglês, mas trocou o curso de Letras pelas Ciências Sociais por influência de um tio historiador.

A decisão a levaria a se formar na turma da USP mais afetada pela repressão da ditadura militar. O incêndio no campus da universidade na rua Maria Antônia, que ela vivenciaria em seu ano de caloura, 1968, marcaria sua vida, apesar de ela evitar o estereótipo de cientistas sociais “geração 68”. 

Marília Fontana Garcia (1950-2019) - Rafael Garcia

Enquanto amigos próximos tiveram de ir para o exílio, Marília encontrou refúgio em São José do Rio Preto (SP), para onde se mudou após o casamento com o psiquiatra Antônio Carlos Garcia. 

Voltou à capital em 1979, já com um casal de filhos pequenos, e ingressou no Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), onde ajudou a fundar a Lua Nova, revista sobre questões sociais da época. 

Quando os amigos se candidataram ao Legislativo no processo de redemocratização, em 1982, preferiu uma atuação discreta, ajudando a preparar a opinião pública para a articulação da nova Assembleia Constituinte. Com o país ainda na ditadura, temia que a nova Carta fosse redigida sem a legitimidade e a representatividade necessárias.

Assim vieram entrevistas, artigos acadêmicos e o livro de bolso “O que é Constituinte”, lançado em 1985 pela coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense. A pequena obra teve 16 edições e superou os 100 mil exemplares vendidos, levando-a à Brasiliense editar ela mesma diversos títulos da coleção. 

Em 1990 viria nova mudança, para o Senai, onde ficou por quase três décadas e defendeu, dentro de suas limitações, um ensino mais generalista, de formação para cidadania, em oposição a cursos puramente técnicos e fechados ao pensamento crítico.

Tendo militado pelo PT sem perder os amigos convertidos ao PSDB, desgostou-se com o pragmatismo das alianças conservadoras e a cooptação ilícita de congressistas, estratégias que marcaram a ascensão dos dois partidos. A reconciliação com ideais democráticos da esquerda só viria quando a amiga Margarida lhe pediu ajuda na pesquisa para a biografia da socióloga Ruth Cardoso, professora das duas.

A aposentadoria coincidiu com o nascimento dos netos e o diagnóstico de um câncer, com o qual lidou de forma pragmática por três anos e meio. Mais difícil foi a perda do único irmão, Marcos, após um infarto abrupto em 2018.

Nos últimos meses, assistia com consternação a propostas precárias de renovação da Constituição de 1988. Em 1984, ela escrevera na Lua Nova:

“O desejo de uma nova Constituição, que existe hoje no Brasil, não caiu do céu. Ele foi se formando dentro do sufoco dos anos de arbítrio, a partir do revigoramento dos movimentos populares [...] e da imensa necessidade de informação e participação que as massas vêm demonstrando. [...] Nas sociedades democráticas, uma Constituição é (ou, pelo menos, deve ser) fruto de um amplo debate entre as forças vivas da nação.”

Marília Fontana Garcia morreu no domingo (15). Deixa dois filhos —este repórter e a musicista Isabel—, a nora e os netos Júlio e Matias, que conviverão com a lembrança de sua voz tão firme ao contar histórias e tão doce ao cantarolar.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

Veja os anúncios de mortes

Veja os anúncios de missa

 
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.