Marília nasceu na confluência de duas famílias de imigrantes italianos em São Paulo, cresceu num ambiente letrado e construiu uma relação com a língua e a arte tão próxima que esta lhe amparou tanto no trabalho como nas horas de lazer.
Filha de um professor de português e latim e de uma ceramista e dona de casa, dominou o francês, o italiano e o inglês, mas trocou o curso de Letras pelas Ciências Sociais por influência de um tio historiador.
A decisão a levaria a se formar na turma da USP mais afetada pela repressão da ditadura militar. O incêndio no campus da universidade na rua Maria Antônia, que ela vivenciaria em seu ano de caloura, 1968, marcaria sua vida, apesar de ela evitar o estereótipo de cientistas sociais “geração 68”.
Enquanto amigos próximos tiveram de ir para o exílio, Marília encontrou refúgio em São José do Rio Preto (SP), para onde se mudou após o casamento com o psiquiatra Antônio Carlos Garcia.
Voltou à capital em 1979, já com um casal de filhos pequenos, e ingressou no Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), onde ajudou a fundar a Lua Nova, revista sobre questões sociais da época.
Quando os amigos se candidataram ao Legislativo no processo de redemocratização, em 1982, preferiu uma atuação discreta, ajudando a preparar a opinião pública para a articulação da nova Assembleia Constituinte. Com o país ainda na ditadura, temia que a nova Carta fosse redigida sem a legitimidade e a representatividade necessárias.
Assim vieram entrevistas, artigos acadêmicos e o livro de bolso “O que é Constituinte”, lançado em 1985 pela coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense. A pequena obra teve 16 edições e superou os 100 mil exemplares vendidos, levando-a à Brasiliense editar ela mesma diversos títulos da coleção.
Em 1990 viria nova mudança, para o Senai, onde ficou por quase três décadas e defendeu, dentro de suas limitações, um ensino mais generalista, de formação para cidadania, em oposição a cursos puramente técnicos e fechados ao pensamento crítico.
Tendo militado pelo PT sem perder os amigos convertidos ao PSDB, desgostou-se com o pragmatismo das alianças conservadoras e a cooptação ilícita de congressistas, estratégias que marcaram a ascensão dos dois partidos. A reconciliação com ideais democráticos da esquerda só viria quando a amiga Margarida lhe pediu ajuda na pesquisa para a biografia da socióloga Ruth Cardoso, professora das duas.
A aposentadoria coincidiu com o nascimento dos netos e o diagnóstico de um câncer, com o qual lidou de forma pragmática por três anos e meio. Mais difícil foi a perda do único irmão, Marcos, após um infarto abrupto em 2018.
Nos últimos meses, assistia com consternação a propostas precárias de renovação da Constituição de 1988. Em 1984, ela escrevera na Lua Nova:
“O desejo de uma nova Constituição, que existe hoje no Brasil, não caiu do céu. Ele foi se formando dentro do sufoco dos anos de arbítrio, a partir do revigoramento dos movimentos populares [...] e da imensa necessidade de informação e participação que as massas vêm demonstrando. [...] Nas sociedades democráticas, uma Constituição é (ou, pelo menos, deve ser) fruto de um amplo debate entre as forças vivas da nação.”
Marília Fontana Garcia morreu no domingo (15). Deixa dois filhos —este repórter e a musicista Isabel—, a nora e os netos Júlio e Matias, que conviverão com a lembrança de sua voz tão firme ao contar histórias e tão doce ao cantarolar.
coluna.obituario@grupofolha.com.br
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.