Descrição de chapéu Saneamento no Brasil

'Aqui não tem banheiro, não tem fossa, não tem nada'

Em país onde ao menos 1,5 milhão de moradias não têm banheiro, falta de ação perpetua desequilíbrio sanitário

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Mulher observa por janela de casebre, vista de fora, com varal e sacos de entulho

Antonete de Castro Monteiro em sua casa, em Ananindeua (PA) Pedro Ladeira/Folhapress

Ananindeua (PA)

Na casa de Antonete de Castro Monteiro, 50, falta água potável, torneira, pia e um dos cômodos mais básicos: o banheiro.

“Aqui não tem banheiro, aqui não tem fossa, aqui não tem nada”, resume ela, que vive há oito anos em uma casa de madeira construída por ela mesma na periferia de Ananindeua, no Pará, uma das piores em saneamento no país.

 

A longa lista de ausências leva a uma rotina de risco diário. Sem banheiro, Antonete corre durante o dia para uma área de mata atrás de casa, onde diz já ter encontrado escorpiões e animais. “À noite, faço as necessidades num saco, guardo, deixo amanhecer e levo lá [aponta a mata].”

O banho é no quintal, com água retirada em baldes de um poço raso no terreno. “Queria ter condições de ir embora, mas não posso”, afirma ela, que chora ao mostrar a casa. “Não tenho condições de levantar um banheiro de alvenaria e ter uma casa digna. O dinheiro que vem é só para a gente comer, e mais nada.”

Desempregada, Nete, como é conhecida, é uma excluída entre os já excluídos do acesso ao saneamento básico.

O censo realizado pelo IBGE em 2010, por exemplo, apontou ao menos 1,5 milhão de domicílios no país sem banheiro ou nem mesmo um sanitário.

Embora não haja dados atualizados, informações da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2018 indicam que esse problema persiste. E não é pequeno.

Ao todo, 5,7 milhões de brasileiros, ou quase 3% da população, vivem em casas sem banheiro exclusivo. São casos em que essa estrutura é compartilhada por várias famílias, aumentando o risco de doenças.

 

Para Léo Heller, relator especial da ONU em direitos humanos para água potável e saneamento, apesar de distante de países em situação crítica, como a Índia, o número de brasileiros sem banheiro pode ser maior do que o que está nas pesquisas. “Tem muita gente que não tem banheiro e o censo não consegue captar.”

Jack Sim, fundador da World Toilet Organization, organização que trabalha em busca de soluções para a falta de banheiro e saneamento, diz ver sinais de avanço no mundo na última década. Mas reclama do tabu que trava estudos.

“Banheiros, saneamento, higiene menstrual e palavras como fezes, merda e excrementos são considerados assuntos embaraçosos. Para parecerem educadas, as pessoas evitam essa discussão. Defecar é função natural do corpo. Temos que comer, beber, fazer xixi e cocô. O que não discutimos não podemos melhorar.”

A falta de banheiros leva à contaminação do ambiente, facilitando a disseminação de doenças, e aumenta o risco de crimes —meninas e mulheres são as mais vulneráveis, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. “Assédios e estupros são comuns quando as atividades de higiene não são seguras”, diz Sim.

A OMS e o Unicef estimam que 4 milhões de brasileiros, ou 2% da população, não tenham acesso a essa estrutura em suas casas. A estimativa, feita com base em cruzamento de bases de dados, consta de relatório divulgado com dados de 2015. Do total, a maioria fica nas áreas rurais.

A ausência de saneamento acaba por acrescentar uma camada extra de desigualdade em um país em que parte da população já vive sem acesso a direitos, afirma Heller.

“Essa desigualdade é resultado da falta de uma política que garanta maior equilíbrio. Norte e Nordeste sempre têm indicadores inferiores. Cidades pequenas têm desempenho pior que médias e grandes. Vilas e favelas têm atendimento inferior às áreas centrais. E ao desagregar dados, sempre vamos observar que quanto mais rico, mais educado, mais branco, melhor a chance de acesso”, diz. 

“Temos no Brasil um padrão de saneamento que podemos denominar discriminatório.”

Desempregada, Antonete vive de bicos, de uma cesta básica da associação de moradores e dos R$ 89 que recebe do Bolsa Família. O valor é usado para comprar comida para ela e o filho com quem divide a casa, de 21 anos, diagnosticado com autismo. 

Para beber e cozinhar, busca água na casa de um vizinho com poço mais profundo. Quando não o encontra, toma água do poço raso de casa. “É uma água fedorenta”, diz ela, que não vê opção.

A casa de Antonete fica perto de uma área de palafitas no bairro Cidade Nova 5, onde também não há rede de esgoto, a poucos metros de um conjunto do Minha Casa Minha Vida. Ela conta que, no passado, tentou entrar em programas de habitação, mas atrasou para tirar documentos. No fim, pagou R$ 100 pelo terreno em área de invasão.

Na entrada da casa, uma porta de metal, é possível ler a frase “Casa de Deus”. O restante da estrutura é mantida com tábuas de madeira intercaladas na iminência de ruírem.

Ela sonha com condições melhores, mas tem orgulho. “Isso tudo foi feito com braços de mulher. Podia ter sol quente, a gente construía”, diz. “Não é um palácio, mas é uma casa. Melhor que estar dentro daquele igarapé ali.” 


 
 
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