Brasileira é acusada de sequestro e tem filha levada à Holanda por pai alemão

Mãe e pai disputam guarda de menina de 4 anos; ex-marido cita lei internacional

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São Paulo

Era uma tarde de segunda-feira quando a criança de 3 anos foi surpreendida com a visita de agentes da Polícia Federal e oficiais de Justiça à creche que frequentava, no Espírito Santo. Com a roupa que vestia e sem se despedir da mãe, ela foi levada à Holanda em 16 de setembro, após decisão da Justiça brasileira.

A menina está no meio de um imbróglio entre a mãe brasileira e o pai alemão, que vive na Holanda.

O ex-casal passa por um divórcio litigioso, e o homem entrou com pedido de restituição da filha após a ex-mulher e a criança viajarem de férias para o Brasil, com sua autorização, e não retornarem.

A sentença da Vara Federal Cível de Vitória determinou que a menina voltasse à Europa em cumprimento à Convenção da Haia, um tratado internacional ratificado pelo Brasil e em vigor no país desde 2001.

O texto estabelece medidas de urgência para o retorno de crianças e adolescentes ao país de residência habitual em casos de sequestro internacional e/ou retenção ilegal. A Folha não teve acesso aos autos do processo, que tramitam em segredo de Justiça.

A mãe diz que a juíza do caso não a ouviu, não ofereceu acordo nem pediu perícia psicossocial da criança. Ela afirma que tinha passagem de volta para a Holanda no início de fevereiro passado, mas que, antes disso, foi acometida por forte dor no peito, falta de ar e vômito e acabou levada para um pronto-socorro. Com risco iminente de infarto, foi orientada a não viajar e a fazer mais exames.

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Passaporte brasileiro - Ricardo Borges - 24.jul.2017/Folhapress

A brasileira enviou então ao tribunal holandês os laudos de três cardiologistas atestando que estava sob suspeita de doença cardíaca e conseguiu que a audiência do divórcio fosse remarcada para junho.
Mas, em abril, segundo seu relato, o ex-marido a denunciou por sequestro internacional evocando a Convenção da Haia.

Ela alega que, se voltasse para a Holanda, seria presa. "Eu não vim com intenção de ficar no Brasil nem de separar minha filha do pai, mas tomei essa decisão por conta da acusação e do pedido de guarda unilateral."

Ela afirma que não pôde se despedir da filha.

"A sentença foi cruel e sigilosa. Determinou que a busca e apreensão fosse feita na creche, e a direção só pode me comunicar quando ela já estava no aeroporto. Eu não sabia qual era o voo, a companhia aérea nem o horário", diz.

"Trataram minha filha de três anos como um objeto, um pacote a ser despachado."

A defesa do alemão, feita no Brasil por um escritório do Rio de Janeiro, afirma que não consta nenhum registro de ocorrência que impeça a mãe de voltar ao país europeu nem que a coloque em risco de ficar presa.

Os advogados afirmam, no entanto, que ela infringiu uma norma internacional ao reter a criança ilegalmente no Brasil quando havia uma decisão na Holanda de guarda compartilhada. Isso significa que ela pode ter de responder a processo lá, mesmo que não seja detida imediatamente.

O ex-casal se conheceu em 2001, quando o alemão passava férias no Brasil. Namoraram dois anos a distância e decidiram se casar. Em 2004, se mudaram para a Holanda em função do trabalho dele.

Ela afirma que passou por diversos tratamentos para conseguir engravidar e que a gestação de alto risco não foi fácil. "Precisei ficar de repouso absoluto por 11 semanas e ainda tive depressão pós-parto e síndrome de estresse pós-traumático", diz.

Quando a filha tinha um ano e meio, no início de 2017, ele pediu o divórcio.

"De repente ele falou ‘agora não quero mais’. Disse que estava apaixonado por outra mulher e que ela iria criar nossa filha", afirma a mulher.

A partir daí, a mãe, que ainda fazia tratamento psiquiátrico, afirma que ele começou a ficar mais agressivo. Os dois continuaram morando juntos, mas, nesse período, a brasileira afirma que passou por um episódio de agressão física —ela diz que, antes disso, já havia passado por outros dois.

"Numa das vezes ele começou a me sacudir, muito forte. Na outra, ele me jogou na parede. Nessa terceira vez, me empurrou várias vezes até que eu cai no chão." Na última, ela diz ter registrado a ocorrência. O ex-marido saiu de casa.

Os dois passaram então a compartilhar a guarda da menina. "Ele me coagia, me intimidava, sabia que eu estava sozinha e mal falava a língua do país [onde viviam]. Era uma tortura psicológica e financeira, porque ele tem muito dinheiro", diz ela, que trabalhava numa estatal brasileira no país europeu.

A defesa do homem nega a acusação de agressão.

Em junho, na audiência do divórcio da qual participou por telechamada, ela diz ter afirmado que pretendia voltar à Holanda. Mas todos os seus pedidos —como pensão alimentícia e continuar morando na casa do casal— foram negados.

A guarda definitiva da criança ainda não foi decidida.

Desde que a menina voltou para a Holanda, a mãe disse à Folha que até então só havia conseguido entrar em contato com ela três vezes.

"A primeira coisa que ela me falou foi ‘mamãe, vem me buscar’. Na nossa segunda ligação, ela perguntou ‘mamãe por que você não tá aqui?’ e nessa última um ‘mamãe queria que você viesse aqui’. Minha filha está triste, abatida, chorosa", afirma.

A menina completou quatro anos no dia 30 de setembro, longe da mãe. Agora, a mulher afirma esperar um acordo entre os dois países para reverter a decisão.

Procurado para responder se interviria na decisão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob o comando de Sergio Moro, afirmou que o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) não se manifesta sobre casos concretos que estão sob segredo de Justiça.

CASO SEAN GOLDMAN

Em 2004, o menino Sean Goldman, então com 4 anos, virou a figura central de uma batalha judicial entre o pai, o americano David Goldman, e a mãe, a brasileira Bruna Bianchi.

Bruna, que era casada com David e vivia nos EUA, veio ao Brasil de férias em 2004, com o menino, e não voltou. Uma vez no país, ligou ao então marido e pediu o divórcio.

A briga pela guarda na Justiça do Brasil começou quando uma ordem da Justiça de Nova Jersey para a devolução do garoto não foi cumprida e perdurou até 2009, quando o então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, determinou que Sean fosse entregue ao pai os EUA.

Àquela altura, quem pedia a guarda do menino era sua avó materna, Silvana Bianchi, que assumiu a disputa após Bruna morrer, em 2008, durante o parto de uma filha de seu segundo casamento.

O caso suscitou ameaças de sanções econômicas dos EUA e chegou a ser discutido em encontro entre os então presidentes Barack Obama e Lula.

Sean Goldman, hoje com 19 anos, ainda vive nos EUA.

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