Mulher preta quando ganha voz leva tiro ou vai presa, diz sem-teto solta há 5 dias

Acusada de extorquir moradores, Preta Ferreira ficou mais de cem dias em prisão preventiva

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São Paulo

“Ninguém ocupa porque quer, ocupa porque tem necessidade”, gritou a atriz e cantora Preta Ferreira ao deixar a penitenciária feminina em Santana, zona norte de São Paulo, na quinta-feira (10). “Sou inocente.”

Uma das coordenadoras do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), Janice Ferreira Silva, a Preta, ficou 108 dias presa. Quatro dias após a concessão de um habeas corpus e de sua soltura, ela e a mãe, Carmen da Silva Ferreira, conversaram com a Folha sobre o movimento, seus laços, trabalho, acusações e a prisão.

Preta, 35, e Carmen, 59, negam práticas criminosas em sua atuação pelo direito à moradia, garantido na Constituição. 

As duas são alvo, com outras pessoas, de denúncia do promotor Cássio Conserino que usa casos notórios de condutas criminosas em edifícios ocupados para concluir que a prática é comum no meio.

A peça alega que movimentos de ocupação no centro de São Paulo são parte de associação criminosa e cobrariam aluguel sob ameaças, constrangeriam pessoas a participarem de manifestações pró-PT e manteriam laços com a facção criminosa PCC.

 
 

A denúncia coroou uma investigação policial iniciada com um relato anônimo sobre extorsão de moradores do edifício Wilton Paes de Almeida, que ruiu no centro de São Paulo durante um incêndio na madrugada de 1º maio de 2018, deixando sete mortos. O prédio era ocupado por outro movimento sem-teto, MLSM, após anos abandonado.

Por causa da denúncia, em junho, Preta e o irmão, Sidney, foram presos provisoriamente, e, depois, preventivamente. Em agosto, a Justiça pediu a prisão da mãe, que não se entregou e obteve habeas corpus no início de outubro.

Absolvida duas vezes em processo semelhante, Carmen é referência como liderança de ocupações bem-sucedidas na capital paulista. O modelo do MSTC em locais como o antigo Hotel Cambridge e da Ocupação Nove de Julho foi destaque recente na Bienal de Arquitetura de Chicago.

“Por que sou negra, nordestina, não posso pertencer a São Paulo? O indígena não pode pertencer a São Paulo? O quilombola? O LGBT? Meus direitos e deveres eu exerço aqui”, diz. “Não somos minoria não, nós somos minorizados.”

Filha de militar e de empregada doméstica, Carmen nasceu na Bahia, casou-se aos 17 e, para se livrar de uma rotina de abusos, veio para São Paulo aos 32, deixando os oito filhos com seu pai.

Desempregada, viveu na rua. Em um albergue, conheceu integrantes de movimentos de moradia. “Foi o primeiro local de organização popular que eu fui. Moradia é um esteio da luta por outros direitos.”

Com o MSTC, criado em 2000, ela diz buscar para as pessoas o pertencimento à cidade.

Afirma que, embora o movimento comece a ocupar um local com um ato ilegal, a invasão, o primeiro boletim de ocorrência abre o caminho legal, entre documentos provisórios e decisões da Justiça, para que a ocupação prospere.

Existe uma discussão ideológica ​quanto ao termo usado quando vocês ocupam um prédio fala-se em invasão. Qual a diferença?

Carmen​ Há uma grande diferença. Invasão seria chegar num espaço que tem a sua função social e dizer que estou me apoderando. Mas quando a gente entra em espaços vazios, ociosos, sem nenhuma função social, eu estou dando uma designação para aquele local. Todo proprietário tem direito a gozar do imóvel, mas ele tem deveres também, de zelar, pagar impostos, não deixar abandonado. Nós ocupamos.

As senhoras são acusadas de extorsão de moradores. O que é a taxa cobrada nas ocupações?

Carmen​ Ocupamos prédios que estão abandonados há anos, deteriorados. A primeira providência é uma assembleia para definir o tipo de manutenção e decidir a taxa que vai ser cobrada para isso, para portaria 24h, limpeza e reformas do prédio.

A gente faz parcerias, com cursos, assistência médica, odontológica. Quando a família chega até nós, chega arrebentada. É o movimento que faz essa ressocialização. E ela se dá fazendo com que as pessoas compreendam que além de direitos temos deveres.

E quanto a forçar os moradores a irem em manifestações pró-PT?

Carmen ​ Uma das organizações que todo cidadão tem o direito de se envolver é a político-partidária. Não quero ser alguém que vote por uma cesta básica. O Estado nunca chamou a população para dizer "vocês têm o direito de escolher os representantes do seu bairro", não explica o que é o conselho tutelar, o de desenvolvimento urbano, o de orçamento público. Essa instrução faz parte do MSTC.

Não existe constrangimento [obrigar moradores a irem a eventos de protesto. Ambas são filiadas ao partido]. Quando tem ato a gente informa, a pessoa vai se quiser. Ela entra no movimento sabendo o que é o movimento. 

Preta Por que eu trabalho pro Boletim Lula Livre [Preta apresenta parte dos vídeos semanais] é crime? Eu sou atriz, tenho DRT [registro da profissão]. Estudei para isso e ganho para apresentar. Tenho minhas posições políticas e meu direito de escolha. 

A denúncia afirma que os movimentos têm relações com o PCC. Como as senhoras fazem para afastar integrantes de facções criminosas das ocupações?

Carmen Nós não aceitamos drogas, bebedeira, roubo, pedofilia, homem que bate em mulher. As regras são claras em estatuto e regimento interno. Se chega alguém que quer ter essa condução, a gente procura resolver no diálogo. Se não [resolver], expõe em assembleia para os moradores e chama a polícia.

Não quero saber da organização do PCC, não me diz respeito. A nossa [organização] é por estado de direito, por políticas públicas.

Como pretendem provar a sua inocência?

​Preta Eu passei 108 dias numa prisão sem ter cometido crime algum. Sem poder me defender, sem ter sido escutada. Cadê os motivos, onde estão essas provas? Sou tão segura da minha inocência que falei para uma rádio que estou despreocupada. Não sou eu quem tem que provar minha inocência, eles tem que provar que eu sou culpada. E eu sei que sou inocente.

Você disse que saiu com uma nova causa. Como esse período presa te mudou?

Preta Conheci um outro lado da injustiça, que é dentro dos presídios. Ninguém faz nada por essas mulheres [detentas]. Quando saem vão fazer o quê? Qual a ressocialização que essas mulheres tem? Todo mundo pode ser ressocializado se der oportunidade. Quero montar um projeto gerido por ex-presidiárias, implantar um modelo para dar oportunidade, de educação, de saúde, que todo mundo siga.

Na quinta houve o episódio da abordagem policial ao carro que buscaria Sidney, o que a vereadora Juliana Cardoso disse ter sido premeditado. Acreditam que são vítimas de perseguição? 

Preta Total. Até hoje o Estado está procurando provas contra a gente. Ainda mais depois que [a prisão] teve repercussão.

Carmen ​A prisão dos meus filhos foi para me atingir. A minha família inteira foi destroçada. Meus netos sofreram bullying na escola. De uma coisa eu tenho certeza, a luta continua e eu saio muito mais fortalecida. As pessoas entenderam a causa.

Como foi não poder ir à Bienal de Arquitetura de Chicago? 

Carmen Foi triste [não poder ir por estar foragida] e ao mesmo tempo não, porque o MSTC está lá, representadíssimo. Eu queria ir para dizer como é possível o coletivo fazer coisas boas, ser um intermediário entre o poder público e a população. Que o estado e o direito não são assistencialistas, mas podem fazer coisas essenciais e populares —o social de fato.

As senhoras cogitam disputar cargos eletivos?

Carmen Se for mais um instrumento para fazer algo de bem para o coletivo, não posso dizer que não cogito. Mas neste momento, não.

Preta Acho que posso agir de outras formas. Até porque eu não quero ser mais uma Marielle. Mulher preta aqui no Brasil quando ganha voz leva tiros ou então vai parar atrás das grades inocentemente. Eu vou entrar em estúdio agora, gravar meu CD. A arte salva, e a minha arte vai salvar outras pessoas.

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