Navio alemão rendido pelo Brasil na Segunda Guerra é tema de festa anual

Filhos e netos de tripulantes do Windhuk, retido em Santos, se reúnem entre chopes e memórias

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São Paulo

Como fazem todos os anos, os descendentes das famílias dos 244 tripulantes do navio alemão Windhuk, aprisionado no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, vão se reunir para sua festa de confraternização no próximo dia 7, no restaurante do mesmo nome, em Moema, na zona sul.

Entre eles, estará Carl Johanes Braack, 75, o único sobrevivente do campo de concentração de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, criado pelo governo brasileiro para manter como prisioneiros os tripulantes do navio, depois que o Brasil entrou na guerra contra a Alemanha, em janeiro de 1942. Foi lá que Carl nasceu. 

Os pais dele se conheceram na 13ª viagem do transatlântico alemão que partiu com 400 passageiros de Hamburgo na manhã de 21 de julho de 1939, rumo à África, passando antes por vários portos da Europa, até chegar à África do Sul, então uma colônia britânica.

Um mês depois, o Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha, e o Windhuk recebeu ordens para procurar porto de país neutro, quando estava ancorado na Cidade do Cabo. Ali começava a saga pelos mares conflagrados que terminaria no dia 7 de dezembro de 1939, há 80 anos, no porto de Santos. 

Os passageiros todos já tinham desembarcado em outros países.

Carl Braack pede outro no restaurante Windhuk antes de começar a contar a história de seus pais, o comissário August Braack e a professora Hildegard Lange, que faziam parte da tripulação e se casariam no navio ancorado em Santos, em janeiro de 1940. 

Sem poder sair do porto, no começo os tripulantes moravam no navio, mas aos poucos eles foram se mudando para pensões e casas da Baixada Santista. Como continuavam recebendo salários mesmo sem trabalhar, os tripulantes viraram turistas, aproveitando para conhecer o Brasil. 

A farra acabou quando o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. Os tripulantes alemães foram todos presos e levados para a Casa de Detenção de Imigrantes de São Paulo. 

August e Hildegard, grávida, foram levados de trem blindado ao campo de concentração de Pindamonhagaba, instalado numa fazenda do Instituto de Zootenia do Estado (outros foram instalados em Bauru, Guaratinguetá, Ribeirão Preto e Pirassununga, mas logo desativados).

Como o jornalista Camões Filho conta em seu livro “O Canto e o Vento – A história dos prisioneiros alemães nos campos de concentração brasileiros”, o governo brasileiro tentou chamar tais locais de “campos de internação”.

Mas documentos oficiais do Dops (Delegacia Especializada de Ordem Política e Social), usavam este endereço nas correspondências: “Campo de Concentração, Pindamonhangaba, Estado de São Paulo”. 

Carl hoje diz que era “um campo de concentração light”, onde sua mãe dava aulas no jardim de infância e os tripulantes prisioneiros podiam sair acompanhados dos guardas nas noites de sábado, com a bandinha do navio, para se divertirem no centro da cidade.

“Na volta, muitas vezes os alemães tinham que carregar os guardas para eles não se perderem no caminho.”

Apesar de ter nascido no Brasil e aprendido português na escola, Carl ainda fala com um leve sotaque germânico. “Eu sou um drawback”, brinca ele, e explica: “Matéria-prima importada e montada aqui.”

Em agosto de 1945, quando a guerra acabou, as famílias se espalharam por diferentes cidades onde já havia pequenas colônias alemãs. Com pouco mais de um ano, Carl foi morar com os pais num “porão da rua Aurora”, no centro de São Paulo, então área residencial.

Aos 20 anos, Carl finalmente conheceu a Alemanha de seus pais. Viajou de graça num navio cargueiro para fazer um curso de comércio exterior em Hamburgo. Gostou tanto que queria ficar —de preferência, trabalhando em navio, como os pais. “Não sentia saudade de nada do Brasil”. 

Filho único, acabou voltando para fazer faculdade de administração e tocar a vida por aqui. Quando se tornou conhecida a história do campo, anos depois, ele voltou lá três vezes junto com a mãe para acompanhar repórteres e ficou triste com o que viu. 

“Destruíram tudo. Os alojamentos separados de homens e mulheres viraram estábulos, só tinha bosta de vaca. Do que os alemães fizeram, sobrou a dragagem de um brejo. A casinha onde meus pais moraram não existia mais.” 

Filha do tripulante Willi Schlote, Edith Lammerz, 67, nasceu em Campos do Jordão, para onde seguiram muitas famílias com destino certo: o Grande Hotel da cidade, que pertencia ao alemão Heinrich Brecht. Chefes de cozinha, padeiros, garçons, cabeleireiros, comissários, havia emprego para todos no Grande Hotel de Campos de Jordão, que hoje é administrado pelo Sesc. 

Quando Edith é indagada sobre o que o pai fazia no navio, quem responde é o marido, o empresário Norberto Lammerz: “Bebia!”

Em volta da mesa, todos caem na gargalhada, e Edith explica: Willi era barman do navio, mesma função que passou a ocupar no hotel, antes de aprender o ofício de padeiro. 

 

Tinha apenas 19 anos durante a fatídica viagem, cujo final feliz só foi possível com uma ideia do capitão Wilhem Brauer para escapar dos inimigos que atacavam os navios alemães. É um episódio que todos gostam de contar. 

Depois de apagar as luzes e proibir os comissários de fumar no convés, certa noite, com o navio em movimento, o Wildhuk foi todo pintado de preto por tripulantes pendurados nas cordas em alto mar. 

O pessoal da lavanderia providenciou uma bandeira japonesa, e o Windhuk já tinha virado “Santos Maru” ao aportar em Santos, são e salvo. O Japão ainda não havia entrado na guerra, era um país neutro, como o Brasil.

Só não se sabe que fim levou a bandinha do navio. Vendido pelo governo brasileiro para os Estados Unidos, o Windhuk foi transformado em navio militar, mudou o nome para USS Le Jeune e ainda participou de duas guerras, na Coreia e no Vietnã, como relata Camões Filho. O sino do navio, de 127 quilos, está hoje no estado americano da Virgínia. 

Já a história do restaurante homônimo, que resiste há 71 anos e agora está num casarão em estilo enxaimel germânico, com tijolos aparentes e muita madeira, é mais tranquila e saborosa, mas tem a mesma origem. 

Dois tripulantes, o garçom Otto Rückert e o comissário Rolf Stephan, abriram em 1948 o Windhuk, na avenida Ibirapuera, perto de onde hoje é o shopping. A taberna era bem simples: só servia chope, chips de batata e amendoim. 

 
Atual proprietário, Valfrido Krieger, 77, começou como empregado e, um ano depois, comprou o bar, que já pertencia a outros sócios, em 1964. Passou a preparar comida sob encomenda, mas não tinha só pratos alemães. “Cheguei a servir até sopa de tartaruga.”

Com a fama e o movimento aumentando, em 1979 ele demoliu uma antiga residência na alameda Arapanés para construir o atual casarão, projetado para ser um restaurante com 250 lugares, hoje com 22 funcionários.

Pouco tempo depois, o irmão Francisco, entrou como sócio. Além dos canecões de chope, as paredes são enfeitadas com retratos antigos dos tripulantes e suas famílias, recortes de reportagens e um grande quadro a óleo do imponente navio. 

As festas de confraternização das famílias dos tripulantes do Windhuk começaram em 1989, nos 50 anos da chegada do navio ao Brasil. 

Nesses dias, é servido o cardápio normal —todos os pratos imagináveis da cozinha germânica e um bolo enfeitado com o desenho do navio, ao som de músicas do cancioneiro antigo, aos cuidados do sanfoneiro Eric Fuks. 

A celebração é aberta ao público e começa ao meio-dia na alameda Arapanés, 1400, em Moema.

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