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Primeira turma de medicina da Federal do Recôncavo, na BA, forma 12 médicos negros

Vender cachorro-quente e canetas, além de depender de bolsa, foi rotina de jovens para se sustentar

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André Uzêda
Salvador

A voz da cantora Maria Bethânia preencheu o auditório com o verso “seu olho me olha, mas não pode alcançar” assim que Tayana Barbosa, 28, recebeu os cumprimentos na cerimônia de formatura do curso de medicina da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), em Santo Antônio de Jesus, próximo a Salvador.

A música tocada, por escolha da aluna, era Reconvexo, composta por Caetano Veloso, em 1978, para ser cantada por sua irmã, Bethânia. Ela se emocionou ao ouvir a canção. “Eu, negra, de família pobre, que recebeu Bolsa Família e vendeu cachorro-quente, me tornei médica."

Tayana ingressou na UFRB, por cotas, três anos após a criação da universidade. Cursou o Bacharelado Interdisciplinar e, pelas boas notas alcançadas, pode preencher uma das vagas de medicina, em 2012.

No início de novembro, ela e seus colegas receberam o diploma como a primeira turma de médicos formados pela instituição. De 29 formandos, 12 (cerca de 40%) se autodeclaram negros. 

Assim que as últimas notas foram lançadas, em agosto, o grupo marcou uma foto. Na imagem, os 12 alunos negros estão de braços cruzados e semblante fechado. 

Grupo de estudantes negros se formam em medicina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no dia da colação de grau - Antonio Wagner

A foto repercutiu na internet. A assessoria de Lula (à época, ainda preso em Curitiba) fez uma publicação no twitter. O texto dizia que “um jovem negro se formando em medicina é um ato de resistência”.

A UFRB foi criada em 2006, no governo Lula.  Foi a segunda universidade federal da Bahia, exatamente 60 anos depois da primeira —a UFBA, sediada na capital, Salvador, é de 1946.

A nova unidade foi pensada para interiorizar o ensino superior, com campos universitários em várias cidades do Recôncavo Baiano. A região concentra uma das maiores populações negras de todo o estado, por causa do maciço desembarque de africanos escravizados, durante o período colonial, para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar.

“A gente não fez a foto para causar”, diz Keline Santos, 27. Filha de pai motorista e mãe que trabalha com serviços gerais, ela conta que só concluiu o curso por ter tido bolsa estudantil.

“Pra ajudar nas despesas ainda vendia canetas. Quando a gente fez a foto, disseram que deveríamos estar sorrindo. Mas quem diz isso não sabe o que passamos”, diz.

Fora as dificuldades em bancar a vida em outra cidade, o grupo narra ainda episódios de preconceito racial sofrido ao longo do curso. Vinícius Miranda, 27, diz que sempre detectou “comportamentos racistas”.

“Lembro dos olhares, no início do curso, quando fomos participar de um congresso. Tinha alunos de várias faculdades particulares. E eles nos olhavam como se não devêssemos estar ali."

“Mesmo formado, ainda percebo isso. Em um mesmo dia, no posto de saúde, recebo três ou quatro perguntas se sou mesmo médico”, conta.

A primeira turma de medicina da federal do Recôncavo teve 12 alunos negros, cerca de 40% do total dos formandos - 19.nov.2019/Arquivo pessoal

Os reiterados casos fizeram os estudantes organizarem um grupo de WhattsApp –que já teve alguns nomes, entre eles “pretos no poder”– para debater os ataques sofridos.

“A gente passou a ter uma noção coletiva de como éramos tratados. Depois, passamos a nos ajudar. Falávamos de vagas de emprego e indicávamos cursos”, diz Letícia Almeida, 32.

Dados do IBGE, divulgados na última quarta-feira (13), demonstram que pela primeira vez a população autodeclarada preta ou parda (50,3%) passou a representar mais da metade dos estudantes de ensino superior da rede pública do Brasil.

“Podemos interpretar que as cotas são responsáveis por este aumento”, diz Mariana Viveiros, supervisora de disseminação de informação do IBGE.

Apesar do dado, Viveiros aponta a preocupação para grupos vulneráveis. “Dos jovens, entre 18 a 24 anos, 28,8% de pretos e pardos abandonam o ensino médio. A evasão entre brancos é de 17,4%. Isso significa que é um grupo que não vai ser contemplado pela cota. E se reflete em salário e qualidade de vida lá na frente."

Atualmente, existem seis universidades públicas de medicina na Bahia. Duas federais e quatro estaduais. Contando as instituições privadas, o número sobe para 10. Destas, metade está em Salvador. A Bahia possui 417 municípios.

“O problema da medicina no Brasil é, acima de tudo, territorial. Existe a cobertura médica, mas eles querem atuar nos grandes centros. A filosofia aqui na UFRB foi de atender cidades médias e pequenas. Adotamos uma medicina menos medicamentosa e mais humana”, diz Paulo Gabriel Nacif, reitor à época da fundação.

Tayana é um exemplo desse modelo. Nasceu em Conceição do Almeida, cidade de pouco mais de 20 mil habitantes e, ao concluir o curso, decidiu voltar e trabalhar na sua terra natal como clinica geral. 

“Quando estava na quinta série da escola, uma menina, negra como eu, disse que era impossível negros se tornarem médicos. Quero que outras crianças vejam que na cidade delas tem, sim, uma médica negra.”

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