Brasil já teve Vovô Índio concorrente de Papai Noel; conheça

Personagem da mata teria sido criado por intelectuais nacionalistas e apropriado pelo movimento integralista, diz pesquisador

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Rio de Janeiro

Se hoje direitistas alérgicos ao comunismo gritam por aí “a minha bandeira jamais será vermelha”, nos anos 1930, a cor virou símbolo de um imperialismo que precisava ser defenestrado a qualquer custo pelos integralistas da época. O chefe dessa quadrilha rubra? Papai Noel. 

Movimento calcado no nacionalismo de matizes fascistas, o integralismo se empolga com um potencial substituto do velhinho que de bom, para eles, não tem nada. Assim cresceu a fábula do Vovô Índio, um senhorzinho “muito amigo das árvores”, vestido com “penas de todas as cores dos passarinhos”, que distribuía presentes para as crianças brasileiras.

A descrição foi feita pelo jornalista Christovam de Camargo na edição de 25 de dezembro de 1934 do jornal já extinto Correio da Manhã. Ainda é lembrado aqui e acolá por integralistas contemporâneos, sobretudo na época natalina, em postagens nas redes sociais.

“A difusão era por meio da imprensa integralista, muito ativa na época. Ela chegou a ter mais de cem títulos de periódicos em todo o Brasil com a empresa Sigma Jornais Reunidos”, diz o historiador Leandro Pereira Gonçalves, autor de “Plínio Salgado” (FGV Editora), biografia do pai do movimento.

Reproduções do Vovô Índio, figura que surgiu nos anos 1930 para substituir Papai Noel - Reprodução

A aversão a Noel pululou nas páginas da Anauê, revista da época batizada com a saudação integralista de origem tupi. Uma capa de 1936 traz a ilustração de um rapazinho que indica com o dedo a saída, deixando claro para o velhinho do saco vermelho que ele não era bem-vindo em sua casa.

O artigo de Christovam de Camargo, amigo de Mário de Andrade, pai do escultor Sérgio de Camargo e sem conexão conhecida com o movimento integralista, detalhou a saga do Vovô Índio. Ele teria morrido “de puro desgosto” após brancos invejosos o enxotarem de sua terra.

Para ser alçado a ícone nacionalista, o indígena precisava passar pelo filtro cristão. Daí Vovô Índio, na narrativa de Camargo, ir parar na porta do céu católico.

São Pedro o recepciona e, a princípio, diz que infelizmente ele não pode entrar ali: não é batizado. Mas tenta dar um jeito num convescote com outros santos.

Eis que o próprio Jesus Cristo sugere: “Olhem, pelo meu aniversário, costumo sempre ir ao Brasil entregar presentes para crianças bem comportadas”. Por que não mandar Vovô Índio, já convertido à cristandade, em seu lugar?

Camargo finaliza sua crônica se apresentando como um homem “que conhece bem esse camarada e sabe que ele não gosta de crianças malcriadas e vadias”. 

Segundo Gonçalves, professor do departamento de história da Universidade Federal de Juiz de Fora, tudo indica que o vô da mata “é uma criação de outros grupos intelectuais nacionalistas apropriada informalmente pelos integralistas”. A principal hipótese é que seu pai seja mesmo Camargo, autor do “Fabulário do Vovô Índio”, de 1932.

Reproduções do Vovô Índio, figura que surgiu nos anos 1930 para substituir Papai Noel - Reprodução
 

Um texto do mesmo ano publicado no “Fon Fon: Semanario Alegre, Politico, Critico e Espusiante” defende a “tradição cabocla” do bom velhinho tropical, com direito ao reforço: “A tradição índia é mais bonita do que a tradição preta”.

Em artigo, Victor Emanuel Barbuy, atual presidente da Frente Integralista Brasileira, diz que o grupo não incentiva a substituição do Papai Noel pelo indígena evangelizado. O que querem os integralistas contemporâneos, continua, é a “devolução do Natal ao seu verdadeiro dono, que é o Nosso Senhor Jesus Cristo, o Divino Mestre, Rei do Universo e Divina Fonte de Água Viva”. 

Noel seria apenas uma “paródia materialista e burguesa” de são Nicolau. Nesse contexto, há “certa simpatia” pelo Vovô Índio. “Ficaríamos felizes caso alguém o retomasse, não como personagem-símbolo natalino, mas sim como protagonista de contos e/ou estórias em quadrinhos, convertido à Fé verdadeira, como um autêntico ‘guerreiro de Cristo’.”

Para Gonçalves, é “fake news, nada comprovado com documentos”, dizer que a lenda foi cria do integralismo. Teria sido, isso sim, apropriada pela militância, em especial a mais contemporânea —os chamados neointegralistas.

O Papai Noel tal qual o conhecemos, um senhor rechonchudo de roupa vermelha, foi uma criação popularizada pela Coca-Cola nos mesmos anos 1930, em peças publicitárias esparramadas por publicações como “Ladies Home Journal”, “National Geographic” e “New Yorker”, conforme a própria marca conta em seu site.

A edição natalina de 1934 do Correio da Manhã publicou, além da crônica de Christovam de Camargo, uma outra vangloriando a “entronização do Vovô Índio no pedestal outrora ocupado por um fantoche estrangeiro”.

Seria Noel, “figura ridícula” e deslocada num “país de calor e de sol forte”, onde “esse velho friorento e carrancudo já estava se tornando impertinente”. 

Há também um poema, aqui transcrito respeitando a ortografia daqueles tempos: “Vovô Índio, Vovô Índio/ Papae Noel do Brasil/ É este o primeiro anno/ Que lhe peço um favorzinho/ Eu sei que você me attende/ Pois você é brasileiro/ Brasileiro como eu”. A moda, contudo, nunca pegou de verdade, mesmo entre integralistas. 

“Apesar das tentativas, não deu certo, a imagem do vovô não foi enraizada e há poucos dados sobre essa imagem no movimento, tamanha a força do Papai Noel na cultura brasileira”, afirma Gonçalves. 
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