Divergências em versões de PMs trazem dúvida sobre estopim de pisoteamento

PM diz que caso está sendo investigado e que, por ora, não é possível precisar momento exato das mortes

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São Paulo

Divergências no depoimento de policiais que participaram da operação na favela Paraisópolis (zona oeste) que resultou em nove mortes e 12 feridos, trazem dúvidas sobre o verdadeiro estopim da confusão que levou ao pisoteamento das vítimas.

Documentos obtidos pela Folha, que trazem o depoimento de seis policiais que atuaram naquela noite, colocam em dúvida se a tragédia ocorreu em razão da suposta confusão provocada por disparos de criminosos, ou, em um segundo momento, por policiais militares que tentaram dispersar a multidão com uso de munição não letal.

Integrantes da cúpula da PM admitem que ainda não é possível dizer com certeza o momento exato dos pisoteamentos e somente ao término das investigações, com ajuda de exames periciais, será possível saber com certeza a cronologia do caso.

O ponto central da versão sustentada até agora pelo governo paulista é que, na madrugada de domingo, policiais militares da Rocam (que usam motos) iniciaram uma perseguição a dois suspeitos ocupantes de uma moto de cor preta, modelo XT 660, nas proximidades da Paraisópolis.

Pelo relato, a perseguição teve início quando os criminosos, ao cruzarem com o comboio de PMs, começaram a realizar disparos de arma de fogo contra os PMs. O incidente terminou em uma rua onde ocorria um baile funk, um chamado pancadão com mais de 5.000 pessoas aglomeradas na via.

A polícia relata que a tragédia ocorreu quando esses criminosos, ao entrarem com a moto na aglomeração, passaram a realizar disparos contra os policiais. Segundo eles, isso teria provocado pânico generalizado no público, correria e empurra-empurra, daí as quedas e o pisoteamento.

Ainda de acordo com essa versão, na sequência os policiais de motos teriam sido atacados por parte do público e precisaram ser resgatados por equipes da força tática, que tiveram de usar bombas de efeito moral e de balas de borracha para sair da favela. O uso da força teria sido um movimento de defesa dos próprios policiais, conforme alegam.

Esse grupo tático, especializado em ações ostensivas, é o mesmo ao qual pertencia um policial assassinado há um mês na favela, durante ocorrência policial. Desde então, a PM intensificou operações na área, o também que provocou reclamações por parte de moradores.

Parte dos depoimentos dos policiais aponta que, após os frequentadores do baile funk começarem a atirar objetos contra os PMs de moto, estes conseguiram deixar a favela sem maior confronto. Nesses depoimentos, não há a citação da necessidade da força tática para resgatá-los.

Ainda por essa versão de parte dos PMs, já do lado de fora da favela eles afirmam ter relatado o ocorrido a um comandante, que repassou informações a outro comandante, quando decidiram retornar à favela. Foi neste momento que se depararam com duas viaturas de força tática apedrejadas e danificadas. Nesse momento, segundo eles, “havia um grande número de pessoas descontroladas” e houve o uso de cassetete e munição química para dispersar a multidão.

“Em seguida receberam a informação de que havia nove pessoas desacordadas em uma viela da rua Ernest Renan”, disse o policial militar João Paulo Vecchi Alves Batista, que assina como o condutor da ocorrência (responsável pela versão oficial dos fatos).

No mesmo registro, há PMs que afirmam que o momento exato dos pisoteamentos se deu após tumulto provocado pelos disparos dos bandidos.

Há, porém, um PM ouvido na investigação que não chega nem a mencionar ter havido confusão generalizada após os disparos dos criminosos quando chegaram o baile funk.

Ele cita os disparos e, na sequência, “que pessoas que estavam no pancadão passaram a atirar pedras e garrafas na direção das equipes policiais”. Há, assim, uma outra versão.

Segundo moradores, os policiais fecharam ambos os lados da rua Ernest Renan. Ao disparar munição não letal e dar golpes de cassetete, teriam induzido a multidão a ir para duas vielas estreitas. Em uma delas aconteceu o pisoteamento. 

Os moradores afirmam não ter visto nenhuma perseguição. Segundo a polícia, os suspeitos não foram presos nem tiveram a moto apreendida —munições suspeitas, porém, foram recolhidas. 

O porta-voz da PM, tenente-coronel Emerson Massera, disse que as investigações sobre o caso estão em andamento e, por ora, não é possível precisar o momento exato das mortes.

“Para sabermos o momento exato que as mortes ocorreram vai depender da investigação, mas a hipótese principal é que os fatos que levaram às mortes dessas pessoas se iniciaram com a confusão gerada pelos criminosos que entraram atirando na comunidade”, disse.

Ainda de acordo com oficial, se houve uma tentativa de dispersão do público do pancadão” por parte dos policiais, houve um erro de procedimento com a quebra das normas adotadas pela corporação.

“O que os policiais nos relataram, contudo, é que não atuaram nessa dispersão. Atuaram na perseguição dos criminosos, cessaram essa perseguição quando entraram na comunidade, houve os atos de hostilidade, com arremesso de objetos, com pedras, paus, garrafas; aí, por conta da agressão que os policiais sofreram, houve a necessidade de emprego de quatro granadas de munição química e oito de elastômero, para que os policiais pudessem realmente sair dali”, disse Massera.

O tenente-coronel disse que será apurada a versão de que as motos da Rocam saíram no local (sem ajuda da força tática) e depois retornaram.

Os policiais foram tirados da atividade de policiamento. Massera evita usar o termo afastamento porque “não há indícios de que os policiais cometeram algum crime, algum erro, por isso estão sendo preservados.” 

O ouvidor da Polícia, Benedito Mariano, disse que é necessária uma rigorosa investigação do caso porque não é aceitável ocorrer mortes em uma ação policial.

“Não dá para uma perseguição de dois supostos suspeitos terminar em uma ação de controle de distúrbios, precipitada, sem planejamento, inadequada, quando a intervenção policial se dá quando o baile já em andamento.”

Veja perguntas ainda sem resposta do caso 

Quem eram os homens que estavam na moto, que teriam atirado na polícia, e qual o motivo dos disparos?

A PM ainda não identificou quem são os dois suspeitos que, segundo a versão do governo, teriam disparado contra os agentes que faziam patrulha no local e gerado a suposta perseguição que terminaria em tumulto no baile

Quais as evidências de que a perseguição existiu e onde está a moto?

Testemunhas que estavam em Paraisópolis dizem não ter visto moto nem tiros descritos pelos policiais. Segundo a corporação, era uma motocicleta preta Yamaha, modelo 660R, e a perseguição está comprovada, uma vez que policiais avisaram rapidamente sobre a abordagem. A moto ainda não foi encontrada

Os jovens começaram a correr após ouvir tiros ou para fugir da fumaça das bombas de gás disparadas pela polícia?

A questão ainda é controversa. Na versão oficial da PM, o estopim para a correria que resultou no pisoteamento de nove pessoas foram os tiros supostamente disparados por dois criminosos. Os relatos dos jovens que estavam no baile são de que a correria começou após bombas de gás e agressões por cassetetes que teriam partido da polícia

Os jovens realmente morreram pisoteados? Eles teriam caído na correria ou desmaiado com o efeito das bombas de gás?

Apenas o resultado dos exames de corpo de delito vai dizer com certeza. Segundo a PM, todos morreram pisoteados. Relatos de moradores, porém, são de que as supostas agressões por policiais podem ter ocasionado a morte de parte das vítimas

As viaturas da força tática foram até os PMs de motocicleta para tirá-los em segurança do baile ou os agentes já haviam saído da favela e voltaram depois?

Há incongruências entre as versões da própria polícia. De acordo com o comando da PM, os agentes que teriam perseguido a moto até o baile foram hostilizados e viraram alvo de pedras e garrafas. Os agentes pediram reforço e se abrigaram. Na ocorrência registrada pela Polícia Civil,no entanto, os policiais narram ter conseguido sair da favela, se encontrado com superiores e voltado ao baile com reforço da força tática

Por que a polícia teria dispersado uma multidão sem garantir uma rota segura de escape?

Segundo moradores, policiais fecharam ambos os lados da rua e começaram a disparar balas de borracha e bombas de gás. Imagens e relatos indicam que a multidão ficou encurralada em vielas estreitas —alguns tropeçaram e acabaram mortos. O governo sustenta que não houve dispersão, mas sim reação às agressões

Por que o baile continuou por mais cinco horas após a morte dos jovens?

Ainda não se sabe, mas o baile não tem organizador nem apresentações de DJs ou MCs; funciona com iniciativas descentralizadas ao longo da rua

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