Polícia deve ganhar confiança de vítimas de violência, diz policial canadense

Sargento Stephanie Ashton, da Real Polícia Montada do Canadá, esteve no Brasil para evento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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São Paulo

A polícia deve ganhar a confiança das vítimas de violência doméstica para que denunciem o agressor e os casos deixem de ser subnotificados. Para melhorar a qualidade do trabalho, os agentes devem passar por capacitação contínua.

É o que afirma a sargento Stephanie Ashton, que trabalha há mais de dez anos com casos de violência doméstica e agressão sexual na Real Polícia Montada do Canadá. Ela esteve no Brasil nesta semana para participar de evento do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

A policial canadense Stephanie Ashton
A policial canadense Stephanie Ashton - Divulgação

Para Ashton, além da polícia, também é preciso focar nas pessoas do círculo próximo da vítima, que podem acolhê-la e encorajá-la a tomar uma atitude. 

No Canadá, uma mulher é morta a cada seis dias por um homem próximo, segundo dados do governo. Para a sargento, o Brasil se assemelha ao seu país natal em 2006, quando ela começou a atuar na área de forma integral: com um movimento por mudanças, incentivado pelo feminismo

Lidar com o problema, diz ela, passa por educação para a equidade de gênero associada à penalização do agressor. A sargento defende que a prisão do homem não deve ser o foco, mas o gerenciamento do agressor e a sua recuperação. 

Quando começou a trabalhar com violência contra a mulher?

Comecei na polícia em 1996, mas foi por volta de 2003 que realmente foquei no tema e ele se tornou a minha área de interesse. 

Comecei a trabalhar em uma unidade de violência doméstica de forma integral. 

Eu não acho que a violência doméstica vai acabar. Se a gente interferir de uma forma efetiva, podemos ter menos incidentes, inclusive os mais sérios. 

Há muitas unidades de violência doméstica no Canadá?

Sempre fui crítica quanto a isso em nossa organização. Quando comecei no trabalho, havia originalmente uma. Hoje, há um responsável por violência doméstica em todos os destacamentos da minha província e em quase todos do país. Alguém que recebe um treinamento e tem mais habilidades do que as básicas de investigação. 

Em sua apresentação, a senhora falou sobre um caso que te marcou em 2006. O que aconteceu?

Estava em um briefing matinal e uma pessoa falou que o apartamento de uma mulher, Tricia, havia sido incendiado na noite anterior, e que algumas pessoas acreditavam que o autor do crime era o ex-namorado. 

Quando me aproximei dela, estava relutante em falar comigo. Uma das razões foi que achou o policial que atendeu à ocorrência do incêndio desinteressado. 

Hoje, treinamos nossos oficiais no que chamamos de prática de trauma e forma. A ideia é de que você precisa mostrar que acredita na pessoa. Falar coisas como “Sinto muito que isso ocorreu com você, o que podemos fazer para ajudar?” ou “Eu vejo que você está chateada”. Em vez de falar apenas “então o que está acontecendo aqui?”  

Ela teve que se mudar e, por muitos anos, ficou fora. O desfecho foi positivo: ela pôde voltar, estar com a família, se casar e ter uma vida. A gente ainda se fala, ao menos uma vez por ano. Ela sempre será a pessoa que vejo quando eu faço esse tipo de trabalho. 

Por que o caso foi importante para você?

Porque não pude mantê-la a salvo como gostaria. Eu era nova na unidade na Real Polícia Montada do Canadá e, por ser uma área nova, não havia alguém para me orientar sobre o que eu precisava fazer. Estava no processo de construção. Essa mulher teve que desistir de tudo. 

Quando ela me falou que estava de mudança, eu tive que dizer que achava uma boa ideia. Foi a coisa mais difícil que já tive que dizer a alguém. 

A que atribui o alto número de mortes de mulheres no Canadá?

As situações e os motivos para terem ocorrido são diferentes. Quando alguém morre, eu procuro o histórico, o que a polícia fez sobre isso, se fez tudo o que poderia. Às vezes, o crime é inevitável.

O que notamos em 2017, quando analisamos 12 homicídios na Colúmbia Britânica, foi que apenas duas vítimas haviam procurado a polícia antes. Pode ter havido um histórico, mas não dá para dizer que os policiais poderiam ter agido diferente, porque não foram acionados. 

Precisamos ser melhores em fazer as vítimas virem até nós e confiar na polícia. 

A subnotificação também é um problema no Brasil. Queixas de falta de atendimento adequado nas delegacias são frequentes. Como fazer as mulheres irem até a polícia?

Às vezes a melhor solução é dar mais atenção àquelas pessoas que podem dar suporte à vítima, para que tenha a força de ir até a polícia e enfrentar o processo. 

As coisas não são tão diferentes no Canadá em comparação com o Brasil. Temos o mesmo tipo de problema. É mundial. Podemos ir a qualquer lugar do mundo e aplicar algumas práticas básicas, que incluem se importar com as vítimas, fazê-las saber que há alguém que pode ajudá-las e guiá-las pelo processo. 

No Brasil, há muitos projetos de lei que buscam endurecer as penas para agressores. É mais importante focar na penalização ou na educação das pessoas?

Ambos. Se educarmos da forma correta desde cedo, criamos um ambiente em que não é aceitável ameaçar mulheres. E mulheres LGBTQ também. 

Por outro lado, às vezes temos que punir. Pode ser um programa de manejo de raiva, não necessariamente cadeia. 

Há fatores que podem causar a violência, como problemas mentais, desemprego, vício. Se resolvermos essas questões, talvez possamos reduzir ou prevenir totalmente a violência.

Quais são os outros desafios para combater a violência?

Lidamos com novos agentes todo o tempo. Temos que treiná-los constantemente. Não podemos simplesmente dizer, ok, você já passou por um treinamento, está pronto para trabalhar. Avaliação de risco e compreensão de políticas são habilidades perecíveis. É algo contínuo. 

Quais as principais lições que aprendeu em mais de dez anos de trabalho?

Prender o agressor nem sempre é a coisa mais importante. O gerenciamento do agressor é tão importante quanto e deve ser uma prioridade. Pode levar para a redução da violência de uma forma mais rápida, especialmente se ele se sentir apoiado, respeitando todos no processo. 

E se as leis nem sempre funcionam para nós, temos que pensar em outras formas, ferramentas e ideias. Caso contrário, você vai parar. 

E não deixar o trabalho superar a vida pessoal. É muito fácil de ser pego por esse trabalho. Eu carrego a Tricia comigo, mas de uma forma diferente de quando comecei. 

A senhora fez um trabalho sobre o impacto da prisão de agressores nos filhos.

Descobrimos que, a longo prazo, crianças que testemunham o processo são afetadas por ele, até chegar ao ponto de confiar muito pouco na polícia. 

Começamos a falar com policiais sobre formas alternativas de conduzir uma prisão.

Claro que se a situação é de alto risco, a prisão tem que acontecer. Mas há vezes em que o agressor não está em casa. Pode haver uma negociação para ele se entregar na polícia ou fazer a prisão no trabalho. Ou combinar de alguém buscar a criança para que não veja o pai sendo colocado no carro de polícia. Alternativas que permitem às crianças não fazer parte disso. 

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