Na véspera do aniversário de São Paulo, celebra-se em vários bairros um evento que nasceu fora das fronteiras brasileiras, mas que também diz muito sobre a cidade: a festa da Alasita, da comunidade boliviana, dedicada a um deus indígena aimara que representa abundância.
A tradição é comprar miniaturas de casas, carros ou outros bens materiais que a pessoa queira obter ao longo do ano e, ao meio-dia, submetê-las à bênção de um xamã. Na maior das festas organizadas neste ano na capital paulista, esperavam-se 20 mil pessoas.
Se no início e em meados do século 20 imigrantes de países como Itália, Japão e Portugal vieram em grande número e ajudaram a conformar a identidade de São Paulo, o perfil do estrangeiro que mora aqui foi mudando.
Nos últimos 20 anos, os bolivianos têm sido, de longe, a nacionalidade mais comum: quase 57 mil deles se registraram entre 1999 e 2019, segundo um levantamento feito pela Folha com dados da Polícia Federal.
O número corresponde a 20% do total de 281.625 estrangeiros de todas as nacionalidades nesse período e ao dobro do segundo lugar da lista, ocupado pelos chineses, com cerca de 22 mil registros.
Em seguida vêm pessoas do Haiti, Estados Unidos, Peru e Colômbia. França, Japão, Índia e Argentina completam o top 10.
Afora algumas exceções, é o retrato do que especialistas chamam da transição de uma imigração Norte-Sul (de países do Norte global para os do Sul global, incluindo o Brasil) para Sul-Sul, aponta Tadeu Oliveira, coordenador estatístico do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), que ajudou na análise dos dados.
O fenômeno é mundial e ocorre, em parte, devido às restrições impostas por países ricos à entrada de estrangeiros.
O estrangeiro que quer se mudar para o Brasil legalmente precisa ter visto de trabalho —ou seja, um emprego garantido—, de estudo ou religioso (concedido a missionários, por exemplo). Pessoas casadas com brasileiros ou que têm filhos no país também têm direito à residência.
Uma vez aqui, eles têm 90 dias para se registrar na Polícia Federal e tirar o RNM (registro nacional migratório).
Quem é vítima de perseguição ou vem de países em conflito pode entrar como solicitante de refúgio e viver no país enquanto seu caso é avaliado.
A base utilizada no levantamento da Folha foi o Sismigra (Sistema de Registro Nacional Migratório), da PF, onde são cadastradas as pessoas que tiram o RNM. Os dados de 2019 são até o mês de outubro. Não estão incluídos aí os imigrantes que entram de forma irregular.
Tampouco os solicitantes de refúgio, que seguem outro processo. Por isso, ficaram de fora muitos congoleses e venezuelanos —mesmo assim, essa última nacionalidade já é a segunda mais comum nos registros, graças aos que optaram por pedir outro tipo de permanência e que por isso entraram no Sismigra.
Segundo o levantamento, nos últimos 20 anos só em 3 os bolivianos não estiveram no topo da lista das nacionalidades de origem: 2006, quando chineses lideraram por uma pequena margem, e 2015 e 2016, quando um grande número de haitianos chegou ao Brasil, fugindo da degradação de seu país após o terremoto de 2010 e atraídos por autorizações de residência concedidas pelo governo brasileiro.
O fluxo migratório da Bolívia para São Paulo começou nos anos 1950, impulsionado por um acordo de intercâmbio cultural entre os dois países, e era formado principalmente por pessoas da elite.
Na década de 1980, começaram a sair do país trabalhadores menos qualificados, que migraram para o Brasil, mas principalmente para Argentina, Espanha e Estados Unidos.
Nos anos 2000, com a maior restrição de entrada nos EUA após o 11 de Setembro e as crises na Argentina e na Espanha, o Brasil se tornou um destino mais procurado.
Muitos conseguiram empregos precários em oficinas de costura. “Era um trabalho que podiam desenvolver sem estar dentro da formalidade e sem saber a língua. Ainda é a principal forma, para a comunidade, de crescer economicamente”, diz o sociólogo boliviano Eduardo Schwartzberg, que pesquisa esse tipo de migração.
Mas houve mudanças, aponta ele, especialmente após 2009, quando milhares se regularizaram em uma anistia do governo brasileiro.
“Eles começaram a abrir suas próprias oficinas. Fala-se muito em trabalho escravo, e ainda acontecem alguns casos, mas agora se multiplicaram os negócios familiares, com poucos funcionários.”
Também houve mobilidade social dentro das famílias e aumentou a integração com os brasileiros, observa o pesquisador.
“Os filhos dos primeiros imigrantes frequentaram a escola aqui, aprenderam bem o idioma e assimilaram mais a cultura daqui. Muitos deles estão na universidade”, afirma.
Para Schwartzberg, festividades como a da Alasita —tradicional de La Paz, cidade de origem da maioria da comunidade em São Paulo— têm tudo a ver com a experiência da migração.
“A festa simboliza a abundância, a prosperidade. É o que busca o imigrante quando se muda para outro país.”
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.