Com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no CE

Ação de facções criminosas eleva em 43% mortes de meninas adolescentes no estado do Nordeste

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Foto de Luiza*, 15, torturada e morta por facção criminosa na periferia de Fortaleza Adriano Vizoni/Folhapress

Fortaleza

Luiza, 15, ainda brincava de boneca no estreito espaço do barraco de dois cômodos em que vivia com a avó na periferia de Fortaleza. Mas, ao invés de figurar entre as debutantes do ano, acabou numa lista perversa: a de meninas decretadas —como são conhecidas aquelas que devem ser mortas após determinação de uma facção criminosa. 

Levada arrastada de casa, foi torturada por horas e atingida por sete tiros. A neta é a quarta pessoa assassinada na família de Neide, 70. “Ela era uma criança, mas tinha amizades que não prestam”, conta a avó franzina, que só enxerga por um olho e tem poucos dentes na boca. 

As circunstâncias da morte ainda não foram esclarecidas. Segundo a matriarca, foi uma colega que entregou a menina ao grupo criminoso que controla o bairro, para se livrar da acusação de que seria informante da facção rival. 

A história de Luiza não é caso isolado. Mas faz parte de uma série de assassinatos que acenderam o alerta vermelho no Ceará: meninas sendo mortas por facções criminosas em razão de rivalidades locais entre os grupos somado a exposição delas nas redes sociais e uma escalada de crueldade. 

Embora o risco de um adolescente do sexo masculino morrer vítima de homicídio ainda seja muito maior, a morte delas saltou de 2% para 14% do total para este grupo em dois anos.

Foram 114 meninas entre 10 e 19 anos assassinadas no estado em 2018, um aumento de 43% na comparação com o ano anterior. Se a comparação for com 2016, quando houve 27 assassinatos, a variação é de 322%. Os números vão na contramão da redução de homicídios em geral e de meninos no estado.

Os dados são do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, criado pela Assembleia Legislativa para propor saídas ao recrudescimento da violência nessa faixa etária.

Na capital Fortaleza, a situação é ainda mais brutal. Enquanto no grupo dos garotos houve redução de 35% nos homicídios entre 2017 e 2018, no grupo das garotas houve incremento de 90%.

Os índices alçaram o Ceará ao primeiro lugar do ranking de estado mais perigoso para elas, segundo levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido da Folha.

Por lá, são três principais facções criminosas: a cearense GDE (Guardiões do Estado), a carioca CV (Comando Vermelho) e a paulista PCC (Primeiro Comando da Capital). 

Todas divulgam decretações nas redes sociais, principalmente no Facebook, por meio de perfis anônimos. As ameaças às garotas são mais frequentes e vem acompanhadas de xingamentos que não se aplicariam a homens: marmitinha, vagabunda, safada, pirangueira. 

Algumas postagens indicam que a morte deve ser “sem massagem”, o que significa acrescentar tortura. Seus corpos são expostos antes e depois.

“É a radicalidade do machismo. O gênero autoriza a hiperviolência. São retirados os símbolos de feminilidade. Os cabelos são raspados, os seios cortados”, afirma a psicóloga Daniele Negreiros, pesquisadora do comitê que acompanhou de perto os casos. Na lista de crueldades também estão escalpelamento e estupro.

 

Foi o que aconteceu com Brenda, 14. A estudante teve uma foto antiga sua com colegas do bairro espalhada nas redes sociais. Só que, anos depois, os garotos já compunham as fileiras do crime organizado. 

Decretada, ela se mudou de cidade. Só saía de carro e com vidros escuros. Mas acabou morta dentro de um veículo, com vários tiros a poucas ruas de onde morava.

A investigação não andou e a família prefere não bater ponto na delegacia por se sentir ameaçada. “Vão colocar três policiais aqui para me proteger dia e noite? Não vão, né?! Você percebe que nem por um filho pode fazer nada”, diz o pai da menina, Edvaldo, 45. 

Nas paredes do bairro, o aviso é claro: “Cabueta vai morrer”. É a forma como os cearenses se referem aos caguetas, ou seja, quem delata. 

Tem dia, segue o pai, “que dói tanto que parece que foi hoje. É que tem algo faltando. Eu tinha sete filhos, agora tenho seis. Não é a mesma coisa”. 

Brenda, ele conta, não tinha ruindade, maldade. Passava o dia brincando com os irmãos menores e não se envolvia com o crime. “Mas era atrevida, daquelas que não engolia nada calada”, diz Edvaldo.

Adjetivos como atrevida e ousada aparecem com frequência nos relatos das famílias das vítimas —que tiveram seus nomes e de seus parentes omitidos pela reportagem. Mas esses traços da personalidade, que em outros contextos seriam exaltados, como independência, empoderamento e opiniões fortes, são para elas um risco maior de ser morta. 

É que, quando a vítima é do sexo feminino, as justificativas que levaram ao assassinato são mais irrelevantes, afirma Luiz Fábio Paiva, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará). 

Não pode ter amigo em outro território, nem se negar a aceitar um convite, levar uma informação, fazer um corre. Por vezes, pintar o cabelo de vermelho já pode ser o estopim para uma decretação —a cor é relacionada ao CV. “Um menino não morreria pela mesma situação. Há um controle moral dessa menina”, diz Paiva.

Existem algumas hipóteses levantadas para o aumento no número de meninas assassinadas: o envolvimento com garotos que integram grupos criminosos; a possibilidade de elas terem se tornado alvo de vinganças de facções; e de estarem sendo cooptadas a assumir papéis dentro dos quadros dessas organizações (a minoria das meninas mortas era faccionada, cerca de 10%).

Em 2019, estatísticas parciais apontam para uma diminuição dos homicídios em geral no estado, inclusive de meninas, acompanhando a redução observada nos índices nacionais, que teve queda na casa dos 20%.

Mas a diminuição pouco tem a ver com ações efetivas do estado, defendem especialistas.

Ao assumir o segundo mandato, em janeiro, o governador Camilo Santana (PT) criou uma secretaria exclusiva para as penitenciárias, deixando mais rigorosas as regras nesses locais, o que desencadeou a onda de ataques criminosos no Ceará que atingiu de órgãos públicos a viadutos. 

A Força Nacional foi enviada para ajudar, presos classificados como líderes das facções foram transferidos para prisões federais, e os homicídios caíram, num primeiro momento, segundo especialistas, porque os membros das facções fizeram uma trégua de ataques entre eles.

Mas dia a dia violento das meninas cearenses não mudou, diz o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), relator do Comitê na Assembleia Legislativa. “As causas estruturais que levaram ao assassinato dessas meninas não foram superadas. Elas não estão mais protegidas hoje.”

“Na verdade, no último ano, houve um aprofundamento das vulnerabilidades, com desmonte de políticas sociais e investimento em uma segurança pública focada na ostensividade, de helicópteros e drones”, afirma Negreiros.

A pesquisadora enumera as vulnerabilidades que compõem o cenário periférico cearense: evasão escolar, gravidez na adolescência, experimentação precoce de drogas, insuficiência do atendimento socioeducativo, falta de oportunidade de trabalho formal e renda e a violência armada —as armas de fogo são usadas em 80% das mortes de adolescentes no estado.

“Só escutei os pipocos aqui na esquina de casa”, conta Lúcia, 47, mãe de Amanda, que foi assassinada aos 19. A família vive com um salário mínimo. O pai, ex-usuário de drogas convertido há 13 anos, agora mantém o filho usuário à base de calmantes no pequeno imóvel onde também vivia a menina. Dos 10 filhos do casal, 3 foram perdidos para a violência.

Um dos sobrinhos de Amanda, de 4 anos, viu o assassinato. Agora, repete pela casa: “eu vou crescer e vou matar o cara que atirou na minha tia”.

OUTRO LADO

Procurado, o Facebook informou não ter conhecimento sobre as postagens de decretação e que removeu o conteúdo e as contas indicadas pela Folha. Ainda segundo a empresa, tais posts violam as políticas de uso, que proíbem incitação à violência e organizações criminosas.

“Temos equipes dedicadas a segurança, e usamos uma combinação de denúncias da nossa comunidade, tecnologia e revisão humana para aplicar nossas políticas", disse, em nota, o Facebook.

A Secretaria da Segurança Pública do Ceará, sob a gestão de Camilo Santana (PT), afirmou, em nota, que o estado "trabalha incessantemente para reduzir os crimes violentos letais" e que houve redução nas mortes de jovens do sexo feminino de 12 a 17 anos de novembro de 2018 a novembro de 2019.

Entre as ações do governo do Ceará para diminuir os assassinatos, a pasta cita a criação de uma ferramenta tecnológica que auxilia o mapeamento de territórios e a formulação de estratégias, o programa estadual Pacto por um Ceará Pacífico, que, segundo a secretaria, tem aproximado a polícia das comunidades. Além da instalação de bases fixas do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger) da Polícia Militar, com policiamento 24 horas por dia, em 29 locais da capital.

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