Dez anos após criação, ala LGBT em presídio é a única em MG

Com critério da autodeclaração, trans reclamam que héteros afirmam ser homossexuais para ficar com vagas

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São Joaquim de Bicas (MG)

Sete dos oito anos em que está presa Maria Vitória, 26, passou de cabeça raspada, sem poder pintar o cabelo que nem deixavam crescer.

Foi obrigada a lavar roupa de outros presos, fazer faxina, ter relações sexuais e guardar drogas. Era chamada pelo nome masculino.

Demorou um ano para que seu pedido para ser transferida para o presídio com área especial para gays, travestis e mulheres transexuais, como ela, fosse aprovado.

Ela chegou à Penitenciária Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas, a 50 km de Belo Horizonte, em 2019.

Dez anos depois da criação do projeto pioneiro no país, o Pavilhão 1, com dois andares e 142 vagas, é o único no estado reservado para a população LGBT. Com 217 detentos, o local reuniu presos de alas de Bicas e Vespasiano, também na Grande BH.

 

Sentada na oficina onde faz bolsas de crochê, com o cabelo crescido e pintado de vermelho, Vitória conta que por ter matado um estuprador —crime pelo qual cumpre pena— não podia ficar na área conhecida como “seguro”, reservada a presos ameaçados, como quem comete crimes sexuais ou contra crianças.

Presa aos 18 anos, quando estava começando a transição de gênero, ela ficou sem acesso ao tratamento hormonal e desenvolveu depressão.

No local onde é chamada pelo nome social, ela diminuiu a quantidade de medicação por dia. “Para nós, trans, esse espaço é vital”, diz.

O espaço separado para LGBTs dentro da prisão surgiu com a ativista e atriz Walkiria La Roche, que trabalhava no governo de Antonio Anastasia (PSDB).

Ao visitar presídios, ela ficou chocada ao ver que trans e travestis eram obrigadas a manter o cabelo raspado e com relatos de que preservativos não eram distribuídos nas unidades masculinas.

“A questão do cabelo crescer nunca foi perfumaria, é um reconhecimento da identidade feminina que o próprio Estado tinha roubado”, diz ela. “É uma política pública que veio de uma necessidade e a prova do que é uma política pública feita por uma trans”.

O projeto também previa cursos profissionalizantes que abrissem oportunidades para quando as presas deixassem a cadeia.

Com contratos parados há um tempo, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas diz que irá retomá-los neste ano.

Em dezembro, um galpão próximo ao pavilhão tinha máquinas de costura e computadores prontos para serem usados em programas de remissão de pena (três dias trabalhados descontam um da pena) e cursos à distância.

Um canto do segundo andar foi pintado de rosa chiclete para o salão de beleza, onde serão disponibilizados mais cursos.

“Na cela, eu dou conta de me arrumar, mas isso aqui é minha vida”, diz Shakira Avelasck’s, 24, batendo o cabelo comprido que comprou de outra presa.

Shakira Avelascks (24) estreia salão de beleza da ala LGBT do presídio Professor Jason Soares Albergaria
Shakira Avelascks (24) estreia salão de beleza da ala LGBT do presídio Professor Jason Soares Albergaria - Isis Medeiros - 17.dez.2019/Folhapress

Uma das reclamações das trans e travestis ouvidas pela Folha é o critério de transferência para a ala.

Hoje, basta a assinatura de um Termo de Autodeclaração de Homossexualidade, que a pessoa se comprometa a participar de cursos de profissionalização, ensino e capacitação e que haja vaga. 

“Está sendo tomado nosso espaço. É só falar que é gay, saem de outros presídios e vêm tirar proveito.

Pegam vaga de muitas travestis”, diz Patrícia Strass Close, 39, que ficou na ala também em 2009, em outra passagem pelo presídio.

Rafael Pereira, 24, preso por tráfico de drogas, conta que foi levado a um presídio de Belo Horizonte e pediu para ser transferido de cela para ficar com um amigo, gay. Os outros presos avisaram que se assinasse o termo, não teria volta.

“Chegou aqui teve o debate, porque na rua eu era casado com uma mulher”. Por ter uma companheira trans no presídio, ele agora se define como homossexual.

O governo de Minas diz que o Estado não tem prerrogativa de definir a identidade de gênero ou orientação sexual dos indivíduos e que, para minimizar ocorrências de heterossexuais na ala LGBT, orientou diretores de unidades prisionais a desmistificar a ideia de que o lugar oferece privilégios.

“Isso não é favor, é reparação. Falo por amigas minhas que tiveram que ficar em [penitenciária] masculina”, diz Isabella Cristina, 32. “Nós somos excluídas historicamente de todos os espaços. Eu tenho uma amiga que confundiu a escova de dente com a de outro preso, ele deu um soco, ela bateu a cabeça na pia e morreu”.

Um relatório feito pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa apontou que das, 292 pessoas presas em setembro na ala, 74 se declaravam transexuais e que homens hétero relataram que diretores indicavam que pedissem transferência para lá por questão de superlotação em suas unidades. 

A comissão identificou ainda problemas como comida azeda, ausência de agentes mulheres e falta de regularidade na medicação para soropositivos e outros medicamentos. Com exceção da falta de agentes, o governo Romeu Zema (Novo) nega as demais questões.

“O estado ainda não ofereceu um espaço no sistema prisional para garantir a segurança de mulheres trans e travestis”, diz a deputada estadual Andréia de Jesus (PSOL).

A Folha entrou na penitenciária acompanhada de servidores do governo e só pôde ter acesso a pessoas e locais autorizados por eles. 

Uma nova resolução está sendo discutida, que tem entre as propostas a criação de outras alas. Para Guilherme Gomes Ferreira, o coordenador do programa Passagens, da ONG Somos, que visitou 13 unidades prisionais em 2018, as políticas públicas voltadas a pessoas LGBT nas prisões não evoluíram desde 2009.

Mas, ao invés de se falar na criação de espaços exclusivos, diz ele, a discussão deveria estar voltada a educar quem trabalha nas unidades e outros presos sobre sexualidade e gênero. 

“A diversidade sexual continua prevalecendo nas prisões. E quem não tem coragem de se autodeterminar? Não vai para um estabelecimento específico, vai continuar naquele, sem seus pares”.

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