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Vinicius Torres Freire

Centro rico de SP ficou ilhado e vazio em mais um dia de desastre ambiental

Paulistanos reclamam das autoridades, mas votam em gente que promove devastação do ambiente

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São Paulo

Em mais um dia em que a terra de São Paulo parou, era possível ir de Higienópolis até o Clube Pinheiros em 15 minutos, bem na hora do “rush” do almoço e da troca de turno das escolas, um percurso que em dias normais não muito ruins leva pelo menos 35 minutos. Parecia feriado. Era cilada.

O centro expandido paulistano ficou ilhado. Pouca gente entrava, pouca gente saía. Era possível passar rápido por avenidas como Angélica, Rebouças, Brasil, Faria Lima, Nove de Julho e Consolação, em geral entupidas. Os alagamentos das margens dos rios fecharam as portas da região mais rica da cidade (para quem é de fora: travaram as avenidas-estradas que circundam São Paulo). Também muitas escolas fecharam, pelo menos de manhã, por precaução, por falta de funcionários, porque o entorno estava intransitável ou porque seus prédios alagaram. De resto, muita gente ficou em casa porque desde cedo a prefeitura fazia alertas de desastre e apelos para que ninguém saísse.

Em geral, qualquer chuvinha basta para piorar o trânsito paulistano, chuvisco que também desliga os semáforos, ao que parece podres faz mais de década, o que piora o enrosco. A chuvarada excepcional de domingo para segunda fez o contrário: esvaziou as avenidas infartadas porque a cidade virou uma ilha, o que apenas em parte é metáfora.

 
Avenida São João às 18h.  A cidade teve diversas ruas e avenidas com um transito atípico, por causa dos transtornos causados pelos alagamentos na manhã desta segunda (10)
Avenida São João às 18h. A cidade teve diversas ruas e avenidas com um transito atípico, por causa dos transtornos causados pelos alagamentos na manhã desta segunda (10) - Thea Severino/Folhapress

É um dos sintomas da catástrofe urbanística da grande São Paulo: muita gente mora muito longe do trabalho, um tormento que tira horas de vida do povo comum e uma ineficiência enorme; muita gente rica também mora apenas logo ali do “outro lado” dos rios. Sem poder atravessar os rios ou circular pelas suas margens, não chegavam ao centro expandido, aliviando o trânsito.

Uma funcionária de uma lanchonete do Baixo Augusta (quase Centro) contava como chegou ao trabalho. Vinha de ônibus da Vila Nova Cachoeirinha (extremo norte). Teve de descer na Marginal, com trânsito parado. Andou sob chuva da ponte do Piqueri até a Lapa de Baixo (2 km) e pegou um táxi de aplicativo, sem saber se seria ressarcida. “As empregadas faltaram” era uma conversa comum dos ricos. Não havia trens, parados por causa do mar de imundície excrementícia e tóxica que transbordou dos nossos rios nojentos.

A cidade teve diversas ruas e avenidas com um transito atípico, por causa dos transtornos causados pelos alagamentos na manhã desta segunda (10)
A cidade teve diversas ruas e avenidas com um transito atípico, por causa dos transtornos causados pelos alagamentos na manhã desta segunda (10) - Thea Severino/Folhapress

Rodando pela cidade meio vazia, parecia haver lojas fechadas. Um conhecido do Ceagesp chorava ao contar dos produtos perdidos, o negócio de uma família de imigrantes japoneses e seus descendentes, faz mais de 70 anos no ramo dos hortifrútis e das batatas. Alguns de seus colegas de negócio nem sabiam o tamanho do prejuízo, porque não conseguiam entrar no entreposto alagado, junto da marginal Pinheiros, perto da confluência com o Tietê, uma das zonas mais críticas da inundação.

Mais gente tinha ou terá motivo pior para chorar. Já se conta um morto. Mais gente corre risco de vida ou de perder tudo nas casas penduradas em morros. Hoje, amanhã e nos próximos anos, devem ser a prioridade do pouco dinheiro público que sobrou: evitar mortes do povo que vive em habitação precária nesses barrancos instáveis. Arrumar a cidade a fim de evitar outros danos é tarefa a perder de vista, para a qual há pouco dinheiro, inteligência e interesse.

“As autoridades não cuidam de evitar as enchentes”, se diz por aí. É. Hum. Mas por que há uma cidade que se inunda de água imunda?

Porque a cidade votou em gente que promoveu o plano desse desastre urbanístico ou aplaudia as barbaridades. A maioria dos paulistanos com mais de 40 anos já votou em programas de destruição ambiental: cimentar a cidade para abrir espaço para carros, soterrar rios, arrasas as áreas verdes, construir até o último centímetro sem deixar lugar para parques etc.

A desgraça é sabida. Sempre foi o programa de Paulo Maluf, por exemplo, embora o problema viesse de antes, a começar pela destruição das várzeas dos rios Pinheiros, Tietê e Tamanduateí, ocupadas por avenidas monstruosas (nem se mencione o inchaço criminoso das cidades brasileiras durante a ditadura militar). Era claro que daria errado.

Não é só enchente. Não raro falta água em uma cidade de tanta chuva e de tantos rios enterrados ou emporcalhados. Desde que fui criança, lá se vão quarenta anos, ouço falar de “ocupação irregular das áreas de mananciais”. Isto é, as pessoas moram mal, longe e ocupam a margem de represas, piorando a poluição, porque não têm alternativa de casa decente. O que se faz a respeito? Lembrar do problema quando há crises dramáticas, como em 2015, quando a cidade ficou a dias de entrar em colapso, com as torneiras secas.

Muita vez, convém ressaltar, as “autoridades” fazem o que prometeram na eleição, com aplauso e voto do eleitorado. Quantos programas de ruína ambiental continuam a ser eleitos? Vide 2018. Não estão queimando as matas, do Cerrado à Amazônia? Por que será? Né? Alguém ainda aí se lembra do dia que virou noite na São Paulo do céu de cinzas de florestas, em agosto de 2019? Vão reclamar das “autoridades” quando a cidade parecer cenário de “Blade Runner”, daqui a uma década? Quem vota nessas autoridades amigas do desastre ambiental? “Se liga, mano”, como diz o povo paulistano.

 
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