Crise da água no Rio já dura um mês e impacta de rotina de bar a volta às aulas

Início do ano letivo foi adiado; suspeita é que companhia de abastecimento descumpriu protocolo contra contaminação

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Rio de Janeiro

Há 15 dias, João Paulo Campos vem dessalgando o bacalhau, carro chefe de seu bar, com água mineral. Ele começou a notar o gosto de terra nas torneiras há mais tempo, mas nos primeiros dias achou que o problema seria resolvido rápido. Enganou-se.

“Já estávamos afogados numa crise econômica, sofremos com a violência que impacta o turismo e agora ainda levamos uma pancada dessa da água”, desabafa ele, que é dono do tradicional Velho Adonis, na zona norte carioca.

João Paulo, que a cada manhã desembolsa R$ 120 a mais com os galões, é um entre os milhões de pessoas que têm sofrido com a crise no abastecimento de água no Rio de Janeiro, que já completa um mês e ganhou novos contornos nesta semana.

Agentes da Cedae fazem inspeção na Estação de Tratamento de Água Guandu, em Nova Iguaçu
Agentes da Cedae fazem inspeção na Estação de Tratamento de Água Guandu, em Nova Iguaçu - José Lucena/Futura Press/Folhapress

Desde o início de janeiro, moradores vêm relatando que o líquido está com gosto e cheiro de terra e, em alguns casos, aspecto barrento. A causa é uma substância orgânica chamada geosmina, produzida quando há muita alga e bactéria na água, que até agora não deu indícios concretos de malefícios à saúde.

Na segunda (3), a Cedae, companhia estatal responsável pelo tratamento e distribuição na região metropolitana, identificou um grande volume de detergentes na água captada pela sua principal estação, a Guandu, e decidiu fechar as comportas, paralisando a operação por 15 horas.

A medida causou o desabastecimento de vários pontos e levou a Prefeitura do Rio (e a de Nova Iguaçu) a adiar em um dia o início do ano letivo na rede municipal, porque “muitas” das mais de 1.500 escolas estão sem água. Os alunos, que voltariam a estudar nesta quarta-feira (5), voltarão na quinta (6).

O problema também fez com que a agência que regula o saneamento no estado (Agenersa) definisse prioridades no abastecimento: primeiro devem ser atendidas unidades de saúde e assistência a idosos, escolas, creches, presídios e “demais áreas sensíveis”.

Entre as exigências à Cedae estão ainda o uso de carros-pipa, caso seja necessário, o envio de relatórios diários sobre o abastecimento e a realização de manobras na rede para reorganizar o atendimento à população. Não há, porém, um prazo definido para isso.

Para especialistas, a crise reflete uma mistura de estresse no sistema que abastece a região metropolitana do Rio com erros operacionais e falta de fiscalização. 

A bacia do Guandu recebe despejos de esgoto e rejeitos industriais antes de chegar à ETA (Estação de Tratamento de Água) Guandu, inaugurada na década de 1950 e hoje responsável por abastecer cerca de 9 milhões de pessoas em oito municípios.

Na visão deles, o problema que deu início à crise atual —o cheiro e gosto de terra na água— foi provocado porque a empresa não cumpriu o protocolo padrão, de fechar as comportas ao perceber a proliferação de algas, mesmo procedimento adotado nesta segunda-feira em relação ao detergente.

Presidente da Cedae de 2007 a 2015, Wagner Victer diz que se trata de um procedimento de rotina, para evitar a entrada de substâncias indesejadas na estação de tratamento. Nesses casos, a empresa aumenta a vazão do rio Guandu para empurrar as substâncias.

Especialista em qualidade da água com passagem pelo órgão ambiental do Rio, a engenheira química Elizabeth Lima concorda com a avaliação de Victer. Ela se disse surpresa, porém, com imagens de espuma branca nos equipamentos da estação que circularam nesta segunda, como provável resultado do detergente.

“Essa espuma branca é uma novidade. Ninguém sabe de onde surgiu”, afirmou. A Cedae afirma que ainda apura a veracidade da imagem.

O Inea (Instituto Estadual do Meio Ambiente) e a Polícia Civil coletaram amostras nesta terça, mas o resultado das análises ainda levará tempo, disse a delegada responsável, Josy Lima.

Em nota enviada à Folha, a Agenersa confirma que há suspeitas de não cumprimento do protocolo para evitar a contaminação da água. A agência disse que abriu um processo regulatório para investigar o problema e, caso seja comprovada falha operacional, a empresa poderá ser multada em até R$ 5 milhões.

Os especialistas questionam ainda a fiscalização do setor de saneamento do Rio. “Não tem ninguém para fiscalizar. A Agenersa nunca teve esse papel”, diz Lima. Questionadas sobre a qualidade da água, nem a agência nem a Secretaria Municipal de Saúde disseram ter essa atribuição.

Nesta terça (4), a Cedae afirmou que não fechar as comportas no início do ano foi uma escolha. “Uma vez que [a geosmina] é uma substância que não oferece risco à saúde, não está em nenhuma portaria, nós ficamos entre a escolha de causar um desabastecimento ou de aplicar tecnologias [para detê-la]”, declarou Pedro Ortolano, chefe da estação Guandu.

Segundo a companhia, após a instalação de um equipamento que usa carvão ativado, a água já está saindo da estação sem a substância, mas pode demorar dias para voltar ao normal em casas com reservatórios grandes, por exemplo. Sobre o desabastecimento, ele pode durar até três dias em ruas altas.

Enquanto isso, a população que tem recursos busca segurança na água mineral. A nutricionista Izabella Costa Rocha, por exemplo, vem usando água engarrafada para higienizar frutas. Para cozinhar, usa água da torneira apenas em alimentos que são fervidos.

Com a volta às aulas, decidiu mandar garrafinhas de água mineral com as duas filhas para a escola e alerta as meninas para evitar água do bebedouro. “Elas têm esse hábito, então às vezes vão ao bebedouro sem pensar antes”, diz ela.

Nesta semana, gastou R$ 90 comprando uma caixa de 18 litros de água —novidade que surgiu nos supermercados após a crise— e 30 garrafas de 1,5 litro. Isso além da conta da Cedae. “O mais absurdo é que tem gente que não tem condições de comprar e precisa beber essa água”, afirma ela.

Ministério Público, Defensoria e Agenersa discutem com a Cedae uma possível compensação ao consumidor. À Folha a agência disse que os usuários que se sentirem lesados devem procurar o Procon.

Apesar das reclamações de moradores e comerciantes, o setor de turismo não vê um impacto significativo. O SindHoteis, sindicato patronal de hospedagens na cidade do Rio, por exemplo, afirma que não houve cancelamentos ou outras mudanças porque os hotéis normalmente já oferecem água mineral aos clientes.

“Em nada afetou o turismo da cidade. Pelo contrário, o retorno que temos é que a ocupação hoteleira só cresce e será a maior neste Carnaval”, diz Marcelo Alves, presidente da Riotur, empresa municipal de turismo.

A crise chegou a derrubar o diretor de saneamento da Cedae, Marcos Chimelli. Indicado pelo Pastor Everaldo, líder do partido do governador Wilson Witzel (PSC), o presidente da companhia, Hélio Cabral, permanece no cargo.

Nesta terça, Witzel sofreu duas derrotas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Primeiro, a Comissão de Normas Internas rejeitou a indicação de Bernardo Pegoraro para uma vaga na Agenersa, alegando que ele não tem a experiência exigida para o cargo.

Depois, deputados de oposição protocolaram um pedido de CPI para investigar a crise da Cedae. A empresa está no programa de privatização do estado e teve ações dadas em garantia em troca de empréstimo obtido no período mais duro da crise fiscal do RJ.

“Precisa nessa CPI ter um diagnóstico correto, levantar responsabilidades e propor soluções de curto e médio prazo”, diz o deputado estadual Luiz Paulo (PSDB-RJ). “A ETA do Guandu foi inaugurada em 1955 e depois ampliada até 1965, então precisa de uma readaptação.”

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