Pacientes com suspeita de intoxicação por cerveja em MG lutam contra sequelas um dia de cada vez

Número de mortes por suspeita de contaminação por dietilenoglicol subiu para seis nesta segunda-feira (3)

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Belo Horizonte

Clóvis Reis, 69, voltou para casa no bairro Fernão Dias, em Belo Horizonte, no último dia 14 de janeiro. Nove dias antes de completar oito meses internado em um hospital, sem ter um diagnóstico preciso.

Quando se internou, no dia 23 de maio de 2019, ele tinha dores nas pernas, nas costas, náusea e diarreia. O nível de creatinina estava em 11 mg/litro —o normal é entre 0,7 e 1,3 mg/litro. Mas os médicos não identificavam o problema.

“Sempre usavam o termo do quebra-cabeça, que não encaixava. Uma época, ele só mexia o olho direito”, lembra Valéria Andreazzi Reis, 57, mulher dele.

Nos meses seguintes, ele teve insuficiência renal, parada cardiorrespiratória, foi entubado e internado no CTI. Chegou a ter convulsões, pneumonia, infecções e isquemia cerebral.

 
Clóvis Reis, 69, voltou para casa no bairro Fernão Dias, em Belo Horizonte, no último dia 14 de janeiro; ele foi internado por 8 meses com suspeita de ter sido contaminado pela cerveja - Alexandre Rezende /Folhapress

Hoje, vive com oxigênio 24 horas, tem uma escara nas costas que ainda está sendo tratada, precisa de nebulização várias vezes ao dia, faz hemodiálise três vezes por semana e se consulta com uma fonoaudióloga para recuperar a fala.

Para recebê-lo, a família adaptou a casa. Foram colocadas rampas de madeira para facilitar a locomoção da cadeira de rodas, que ele precisa até que a fisioterapia o ajude a recuperar os movimentos.

“É um milagre ele estar vivo”, diz Valéria.

Para a família, o mistério do que o deixou nesta situação parece ter chegado ao fim com a suspeita de intoxicação por dietilenoglicol, que pode ter atingido outras 30 pessoas em Minas Gerais, segundo a Secretaria Estadual de Saúde —quatro deles foram confirmados.

Dias antes da internação, Clóvis também havia bebido a cerveja Belorizontina, da marca Backer, suspeita de ter sido contaminada. A presença de dietilenoglicol foi encontrada em cervejas da marca. 

O caso dele foge da janela inicial estabelecida pela investigação da Polícia Civil, que analisa casos ocorridos a partir de outubro de 2019. A família reportou às autoridades a suspeita, para que laudos médicos dele sejam comparados aos de outros pacientes.

Na semana passada, o Ministério da Agricultura identificou a presença de etilenoglicol ou dietilenoglicol em outros dez lotes de cervejas da Backer, totalizando 41 lotes contaminados, até o momento.

A Polícia Civil de Minas Gerais confirmou mais duas mortes por suspeita de contaminação por dietilenoglicol, nesta segunda-feira (3).

Das seis mortes até agora, apenas uma tem a confirmação da presença da substância: Paschoal Demartini Filho, 55, morto no dia 7 de janeiro.

Ele era pai da farmacêutica Camila Massardi Demartini, 29. No dia 23 de dezembro, ela viu o marido, Luiz Felippe Telles Ribeiro, 37, começar a se sentir mal, com náusea e vômito e dor abdominal forte. O pai começou a ter sintomas parecidos dois dias depois, sem conseguir urinar.

No dia 27, os dois foram internados —Felippe de madrugada, em Belo Horizonte; o pai dela em Ubá, à tarde. Antes do fim do ano, os dois foram entubados e colocados no CTI. Saudáveis, os médicos de nenhum deles tinham uma resposta para a escalada rápida do agravamento dos quadros.
 

Em meio ao turbilhão, a mulher de um primo do pai de Camila foi a um salão de beleza e conheceu, por acaso, uma amiga da mãe de Flávia Schayer, 48, que estava com o marido, Cristiano Mauro Assis, 47, internado com sintomas parecidos, em BH.

No encontro improvável, com chances iguais às de ganhar na loteria, o número de telefone de Flávia chegou à Camila. No dia 3 de janeiro, 24 horas depois da primeira mensagem trocada entre elas, chegaram à suspeita de que a cerveja era a causa.

Vizinhas no bairro Buritis, com uma distância entre as casas de menos de 1 km em linha reta, elas começaram eliminando as hipóteses mais prováveis.

Pensaram que os maridos poderiam ter andado no mesmo carro de aplicativo, pegado o mesmo carrinho no supermercado ou ter encontrado o mesmo mosquito, macaco ou cachorro, que seria vetor de um vírus.

Um deles havia comido um prato japonês, o outro churrasco —a alimentação não tinha nada em comum. A cerveja parecia fora de cogitação porque as mulheres também haviam consumido e estavam bem.

“Quando nada bateu, mas nada, zero, aí eu abri minha cabeça para coisas que a gente também tinha ingerido. Eu falei: ele gosta de cerveja? E a Flávia: 'ele gosta muito de cerveja. Ele tomou Belorizontina'. Aí eu falei: está aí, é isso”, lembra Camila.

Elas alternaram a cerveja com outras bebidas, como espumante e vinho, o que pode ter cortado o efeito da contaminação. Camila chamou uma representante da secretaria de saúde para que levasse as garrafas que tinha em casa para serem testadas, no dia 5.

No mesmo CTI onde o marido dela estava internado, havia outro paciente, com os mesmos sintomas, que morava em um prédio em frente ao de Flávia. Um amigo dele confirmou que ele também havia tomado Belorizontina em grande quantidade.

“A gente pegou quatro pessoas, que tiveram o mesmo quadro, todos no CTI e todos só tinham em comum isso”, diz Flávia. “Levamos para os médicos, para o hospital e começou uma investigação”.

A Polícia Civil instaurou inquérito para apurar o caso no dia 8 de janeiro. Além de coletar amostras na fábrica da cervejaria, a investigação já ouviu familiares e pediu a exumação do corpo de uma mulher, que morreu em Pompéu, no dia 28 de dezembro, com os mesmos sintomas.

Passado mais de um mês desde que os familiares foram internados, Camila perdeu o pai e ainda está com o marido internado no CTI. Felippe e Cristiano, o marido de Flávia, ainda estão com traqueostomia, ligados a respirador mecânico, e fazendo hemodiálise, com algumas diferenças entre os quadros.

Para que Cristiano, professor de Psicologia da UFMG, possa se comunicar com ela e com a filha, Flávia usa um quadro com letras, onde ele aponta para formar as palavras. Em um vídeo, ela comemora que ele consegue movimentar os pés na cama do hospital e os dedos das mãos.


“[O tempo de recuperação deles] é indeterminado. Pode ser um mês, um ano, e não é linear. Um dia ele está ótimo, no outro a pressão aumenta, no outro, tem uma febre, uma infecção”, diz Camila.

Célio de Barros, 59, vive a mesma situação com o irmão Luciano, 56, internado desde 6 de dezembro. O quadro dele é grave, mas estável. Ele ainda faz hemodiálise todos os dias, tem a visão embaçada, mas está consciente.

“Para a família, é angustiante. Mesmo que ele se recupere das sequelas, é coisa de vários meses. Quando ele mexeu um dedo, no final da entubação, foi uma festa”, diz ele.

Em janeiro, o médico infectologista e epidemiologista, Carlos Starling, reportou três casos suspeitos, que atendeu no primeiro semestre de 2019, para as autoridades competentes. Dois pacientes morreram e um sobreviveu.

“Foram identificados para doenças neurológicas, infecciosas, reumatológicas, autoimunes e não foi confirmado nenhuma dessas hipóteses”, diz ele. “Não podemos afirmar que tenha sido [dietilenoglicol], mas o quadro clínico é um quadro suspeito”.

Na semana passada, algumas famílias se reuniram com representantes da Backer em uma reunião mediada pelo Procon, através da Promotoria de Minas Gerais, para discutir as despesas dos tratamentos de saúde. Outra reunião, entre a empresa e famílias, ocorreu nesta segunda. 

"A Backer está prestando apoio e solidariedade às famílias, por uma questão de humanidade, uma vez que as investigações, ora em curso, ainda não determinaram as causas exatas da origem dos danos causados a essas pessoas", respondeu a empresa à Folha

Nas redes sociais, a empresa disse que montou uma equipe multidisciplinar para atender famílias e pacientes com sintomas de intoxicação e que quer entrar em contato com todos os atingidos. 

"A gente espera agora que isso seja cumprido, que eles façam alguma coisa", diz Flávia.  

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