Tombamento de ginásio do Ibirapuera ameaça projeto de concessão de Doria em SP

Parecer técnico destaca valores histórico e arquitetônico do espaço; governo diz que projeto continua

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São Paulo

A Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, órgão técnico do governo de São Paulo, elaborou parecer em que defende a abertura de estudo para tombamento do Complexo Esportivo do Ibirapuera, na zona sul da cidade. O documento surge como ameaça à expectativa da administração João Doria (PSDB) de concedê-lo à iniciativa privada.

O parecer elaborado por arquitetos que compõem o corpo técnico do UPPH ressalta, segundo a Folha apurou, os valores histórico, arquitetônico e esportivo do complexo, e, por isso, defende abertura de estudo para tombamento, com destaque para o ginásio, o estádio de atletismo (velódromo) e o conjunto aquático do complexo.

O parecer ainda será votado pelos conselheiros do Condephaat, órgão dedicado à preservação do patrimônio histórico estadual ao qual a própria UPPH está vinculada, em data a ser agendada. Devido à importância dada pelo governo do estado ao tema, a votação pode acontecer logo após o Carnaval.

Os conselheiros decidirão, em um primeiro momento, se aprovam a realização de estudo para avaliar o possível tombamento do complexo. Caso votem em favor da abertura dos estudos, o imóvel já passará a ser considerado protegido e intervenções que possam descaracterizá-lo estarão proibidas —o que tende a desanimar possíveis interessados na concessão.

O governo do estado diz que o projeto de concessão continuará sendo desenvolvido.

 Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo
Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo - Gabriel Cabral -22.out.2019/Folhapress

Logo no início de seu mandato, em abril de 2019, Doria promoveu mudanças no Condephaat por meio de um decreto. Os representantes das diferentes instituições que compõem o conselho, como universidades, associações de classe e profissionais de notório saber, passaram a ser escolhidos pelo governador a partir de lista tríplice encaminhada por cada um dos órgãos à Secretaria de Cultura e Economia Criativa. 

Antes disso, as instituições tinham autonomia para decidir quais seriam seus representantes.

À época, a Justiça de São Paulo expediu liminar para suspender o decreto, atendendo a pedido do Ministério Público, que apontava desequilíbrio pró-governo na reforma que o tucano promoveu no conselho. Doria reduziu o corpo total de 30 para 24 conselheiros, e diminuiu de 14 para 5 assentos aqueles ocupados por representantes de universidades paulistas.

O governo do estado, que posteriormente conseguiu a derrubada da liminar, argumenta que há paridade entre os representantes da sociedade civil, 12, e os do governo, em igual número.

Pouco menos de um ano após virar alvo de acusações de ter sido moldado para atender os interesses da gestão Doria, o Condephaat se verá na posição de discutir um tombamento que pode prejudicar os planos do governador de conceder à iniciativa privada o Complexo Esportivo do Ibirapuera.

Principal equipamento do complexo esportivo, o Ginásio do Ibirapuera começou a ser construído em 1953, no bojo dos eventos comemorativos do Quarto Centenário da cidade, em 1954. A efeméride foi encarada pela elite paulista como a chance de mostrar que a capital era moderna e cosmopolita em diferentes frentes: indústria, artes e, também, esportes.

Nas artes plásticas, por exemplo, aconteceu a chamada Exposição Histórica de São Paulo, com obras de Tarsila do Amaral e Clóvis Graciano feitas por ocasião das celebrações.

O autor do projeto do ginásio foi Ícaro de Castro Mello (1913-1986), engenheiro que havia disputado a Olimpíada de Berlim, em 1936, como atleta do salto com vara. Mello ficaria conhecido como o maior especialista em estruturas esportivas do país ao aliar suas experiências como atleta e como engenheiro. Além do ginásio, Mello também projetou o velódromo do Ibirapuera, inaugurado em 1954.

Tanto o ginásio como o velódromo e o conjunto aquático (projetado pelo arquiteto Nestor Lindenberg, que buscou inspiração no trabalho de Mello) tornaram-se referências da vertente brutalista da arquitetura paulista. 

O brutalismo enfatizava a busca pela "verdade estrutural das construções", com a exposição das estruturas e dos materiais utilizados, sem ornamentações consideradas desnecessárias. O concreto bruto, sem revestimento, e as estruturas aparentes são marcas brutalistas nas edificações do complexo esportivo composto por ginásio, velódromo e conjunto aquático do Ibirapuera.

Para além das contribuições histórica e arquitetônica para São Paulo, o parecer da UPPH aponta a importância dos serviços esportivos prestados pelo espaço. O alojamento do complexo recebe jovens que têm alimentação e treinamento no local.

Atualmente, o complexo abriga o Centro de Excelência Esportiva do estado, antes chamado Projeto Futuro. Criado em 1984, dele surgiram medalhistas olímpicos como Maurren Maggi (ouro no salto em distância) e os judocas Tiago Camilo (prata e bronze), Felipe Kitadai (bronze), Rafael Silva (dois bronzes) e Henrique Guimarães (bronze).

Marcos Moliterno, representante do Instituto de Engenharia de São Paulo no Condephaat, diz acreditar que o conselho votará a favor de que se estude o tombamento do complexo. Ele vê um problema posterior, no entanto.

"Temos propriedades que há 20 anos estão em estudo para tombamento e não há pessoal para dar continuidade no processo. Não há definição sobre o tombamento ou não no local, e enquanto isso a propriedade permanece nesse limbo", afirma. Nada impede, portanto, que o mesmo aconteça com o complexo do Ibirapuera.

Moliterno defende o estabelecimento de um limite de dois ou três anos para que se tome uma decisão em relação ao tombamento ou não de qualquer espaço.

Ainda assim, ele vê com simpatia a possibilidade de que o complexo do Ibirapuera seja tombado.

"É muito interessante arquitetonicamente, e tem um valor histórico muito grande para São Paulo."

O projeto de concessão da gestão Doria foi aprovado pela Assembleia Legislativa em junho do ano passado e prevê a instalação de uma nova arena multiuso com capacidade para 20 mil pessoas para realização de eventos esportivos, culturais e religiosos no local. O ginásio tem espaço para 10 mil pessoas.

Há, hoje, a previsão da demolição de estruturas para a construção dessa nova arena, o que pode se tornar proibido com a aprovação de estudos para tombamento.

"A pista vai ser demolida? Provavelmente. Se for, vamos dar outra [para treinarem]”, disse à Folha o secretário de esportes de São Paulo, Aildo Ferreira Rodrigues, em outubro de 2019.

A ideia é a de que a concessão abranja todo o complexo esportivo do Ibirapuera, que tem 105 mil metros quadrados e inclui ginásio, velódromo, conjunto aquático, ginásio Mauro Pinheiro, Palácio do Judô, quadras de tênis e prédio administrativo.

Trecho da pista de atletismo do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães (onde fica o ginásio do Ibirapuera), que apresenta problemas como bolhas e buracos
Trecho da pista de atletismo do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães (onde fica o ginásio do Ibirapuera), que apresenta problemas como bolhas e buracos - Gabriel Cabral - 22.out.2019/Folhapress

A empresa vencedora administraria o espaço por 35 anos, com conclusão das obras em até cinco anos a contar do início da concessão. Ela conseguiria lucro com as receitas acessórias, como ingressos e lojas de alimentação.

O cronograma atual do governo do estado prevê a publicação do edital em junho e a apresentação das propostas em outubro de 2020.

Em nota, a Secretaria de Governo da gestão Doria diz que a concessão do complexo é um dos 21 projetos que compõem a carteira de projetos de concessão do governo.

"A estruturação do projeto atende a todos os requisitos e prazos legais exigidos e assim continuará sendo desenvolvido", afirma.

Também diz que busca a transformação do complexo em um espaço moderno, "com evolução tecnológica dos equipamentos esportivos e de lazer, atendendo a padrões internacionais, atualmente inexistentes em São Paulo."

A pasta conclui o texto ao acrescentar que o processo incluirá consultas e audiências públicas antes da publicação do edital.

Em complemento, a Secretaria de Cultura, órgão do qual o Condephaat faz parte, afirma que "atualmente não há óbice para a concessão do imóvel" e que "o processo se encontra em fase de distribuição para conselheiro relator a ser determinado e, portanto, está indisponível para vistas."

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