Como em um ritual ancestral, mulheres caminham juntas segurando velas e cantando. Sentam-se ao redor do fogo de chão em um galpão de pedra e compartilham vivências como intérpretes, instrumentistas e, agora, compositoras de música regional do Rio Grande do Sul.
O cenário integra um acampamento em uma fazenda em Júlio de Castilhos, a 253 km de Porto Alegre, com 40 gaúchas. Elas se juntaram para compor letra e melodia de canções que as representassem adequadamente, sem machismo.
Letras que subjugam mulheres, como “quanto mais eu passo o laço/muito mais ela me adora” ou “mulher pra mim é como redomão/maneador nas patas e pelego na cara”, esta última igualando uma mulher a uma égua, são comuns no cancioneiro gaúcho.
Realizado durante três dias no inverno de 2019 –“para conciliar com as férias dos filhos, que puderam acompanhar as mães”, explica a organizadora Shana Müller, 40– o encontro, batizado de “Peitaço”, ganhou força de movimento.
Em um grupo virtual, as artistas mantêm troca permanente sobre temas que variam de teoria musical a oportunidades para as artistas.
“Um dos motivos da representação equivocada das mulheres na música regional é que não temos mulheres compositoras. Contamos nos dedos as mulheres. O Peitaço é para incentivar as mulheres a comporem. Nós interpretamos, tocamos, por que não compor?”, diz Müller, cantora e apresentadora do programa televisivo Galpão Crioulo, dedicado à cultura gaúcha.
Depois de se apresentarem –“o que surgiu foi muito profundo, especialmente das mais antigas, que muitas vezes contribuíram com composições e não tiveram os nomes colocados”, conta Müller–, elas receberam o tema que deveria inspirar composições.
“Mulher, a divina” foi o mote escolhido pela escritora Letícia Wierzchowski, autora do sucesso “A Casa das Sete Mulheres”, livro com a Revolução Farroupilha (1835-1845) como cenário. Wierzchowski também palestrou durante o acampamento.
Inspiradas pelo tema, formaram grupos para compor. No dia seguinte, apresentaram umas às outras as 15 canções compostas. “Diferentemente dos festivais, não era uma competição para escolher a melhor música. Não foi um concurso para quebrar essa coisa de nos tacharem de competitivas. Criamos um ambiente de conexão e descoberta”, explica Müller.
Insatisfeita com letras em que a mulher do campo aparecia somente no papel de cuidadora da casa e dos filhos enquanto o homem saía desbravar a natureza em busca de sustento ou ia à guerra, a cantora Susane Paz, 29, começou a compor.
“Senti essa necessidade. Existe outra vivência do campo, que é a mulher que faz de tudo e é dona do seu nariz”, explica Paz. “Comecei ficar angustiada. Quer saber? Vou escrever eu mesma. Vou colocar no papel isso daí. Talvez a melodia não consiga fazer, pensei em um primeiro momento. Mais tarde descobri que conseguia fazer a melodia também”, relembra Paz, que também organizou o Peitaço.
Uma das composições dela diz: “Peregrina do caminho/vaga por essas planuras/O vento te pertence/mesmo sendo minuano/E não há taperas em ti/És dona do teu rancho”.
Com musicalidade mais contemporânea, a violinista Clarissa Ferreira compôs: “Eu que me renda/desse destino de prenda/contemporânea gueixa, gaúcha/dar-se feito oferenda”. Ela ministrou a oficina Musas Xucras no Peitaço.
“Falo com pessoas do Rio Grande do Sul que relatam nunca ter sentido identificação com a cultura gaúcha. Meu trabalho tem a ver com isso também, pensar em outras formas desse pertencimento e usos desses símbolos de regionalidade”, diz Ferreira, nascida em Bagé e doutora em etnomusicologia.
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