Descrição de chapéu Coronavírus

Com financiamento em risco, ONGs se reorganizam para combater coronavírus

Diversificação de fonte de renda e maior contribuição de pessoas físicas ajudam entidades a financiar atividades

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São Paulo

O celular toca em uma casa no bairro de Pedreira, na zona Sul da capital paulista. Quem atende é Ana Cristina dos Santos, 49, com a voz embargada. O “alô” do outro lado da linha anseia pela confirmação de que a família de quatro pessoas receberá uma cesta básica do Ceap (Centro Educacional Assistencial Profissionalizante), ONG dedicada a cursos profissionalizantes para jovens carentes.

A ligação era da organização, de fato, mas apenas para avisar que esta Folha gostaria de ouvir a história da baiana que veio para São Paulo aos 19 anos trabalhar como doméstica e que, agora, vê acabar rápido o último pacote de arroz da casa e teme que as contas de água e luz não pagas levem ao corte do serviço.

Ana receberá a cesta básica, segundo Gustavo Pena, 27, gerente de desenvolvimento institucional do Ceap.

Assim como outras ONGs, a entidade teve que se reorganizar e diversificar as fontes de renda para garantir a manutenção do financiamento em tempos de coronavírus.

O Ceap atendeu, em 2019, mais de mil jovens
O Ceap atendeu, em 2019, mais de mil jovens - Divulgação/Ceap

A família de Ana está praticamente toda em casa, com exceção do filho mais velho, de 17 anos, que é jovem aprendiz. “Ele ganha pouco e trabalha muito”, diz ela, que vendia bolos e brigadeiros, mas já não tem mais para quem vender. A renda média da família, somando o que ganhavam Ana e seu marido, que é pintor e está sem trabalho, era de R$ 900 e agora chegou a quase zero, com exceção do benefício do Bolsa Família, de cerca de R$ 310, segundo disse Ana.

Questionada se tentaria receber o auxílio emergencial de R$ 600 anunciado pelo governo federal, Ana disse que não porque já tinha o Bolsa Família. Quem está no programa, no entanto, tem direito ao benefício. A Folha indicou a ela os canais para tirar dúvidas e solicitar o auxílio.

Ana e sua família receberão a cesta básica porque Arthur, o mais jovem dos filhos, estuda robótica na ONG pela manhã, antes de ir para a escola. Devido à quarentena, ele agora faz atividades do curso em casa e as envia para o professor pela internet.

O Ceap já atendeu mais de 7 mil jovens em situação de vulnerabilidade social desde 1985
O Ceap já atendeu mais de 7 mil jovens em situação de vulnerabilidade social desde 1985 - Divulgação/Ceap

“Meu filho está sem escola, não mandaram nada de estudos, não falaram nada. Mas ele se diverte com as atividades do Ceap. O que sobra para a gente pobre é o estudo”, conta.

A casa da família é própria, fruto dos oito anos em que Ana trabalhou como doméstica em São Paulo, logo após chegar da Bahia. Quando conheceu o marido e deixou o emprego, o acordo feito com os antigos patrões rendeu o suficiente para que ela pudesse comprar a casa em que vivem hoje.

Contando com Ana e seus filhos, pelo menos 110 famílias receberão cestas básicas durante três meses, apesar de a organização ter perdido pelo menos R$ 250 mil em doações que receberia em abril e maio de duas empresas parceiras que recuaram devido às incertezas diante da pandemia.

Pena, o gerente do Ceap, conta que outras empresas parceiras da ONG aumentaram em até 10% sua doações para ajudar a oferecer as cestas básicas às famílias dos estudantes.

A pandemia de coronavírus o deixa apreensivo. Isso porque, além dos R$ 250 mil que só devem chegar, se a situação for favorável, no segundo semestre deste ano, a ONG teme não arrecadar o suficiente para honrar o orçamento anual de R$ 6 milhões.

Entre as doações feitas por pessoas físicas, as coisas dão sinais de ligeiro crescimento. “Não sentimos queda nas doações de pessoas físicas até o momento. Pelo contrário, nessa época de pandemia, apenas na primeira semana de abril, tivemos um aumento no número de doadores de quase 40%, com doações de R$ 30, R$ 50, às vezes mais”, diz.

Mensalmente, cerca de 850 pessoas doam para a ONG, um total aproximado de R$ 180 mil. Entre o dia 1º e 8 de abril, entraram R$ 5.000 em caixa com as novas doações.

Para driblar a crise que surge no horizonte, o Ceap aumentou o número de campanhas de doação de pessoas físicas, com temáticas voltadas para os quase 7.000 ex-alunos e para pessoas que moram fora do país, além de buscar doações por chamadas de emergência feitas por empresas, como a que financiou as cestas básicas.

No Brasil, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), há 781.921 OSCs (organizações da sociedade civil), a maior parte (323.522), no Sudeste.

Outra organização sem fins lucrativos, a Liga Solidária também busca maneiras de sobreviver à crise causada pela pandemia de coronavírus. A Liga diversifica suas formas de captação. Com 97 anos de existência, mantém dois residenciais para idosos e duas escolas, todos em São Paulo e cujo lucro é revertido integralmente para ações sociais da própria organização.

O objetivo não é deixar de ter doadores e sim ampliar a quantidade deles, diz o superintendente Alvino de Souza e Silva, 65.

Liga Solidária tem 97 anos de existência e 90% das suas ações são realizadas no distrito Raposo Tavares, em São Paulo
Liga Solidária tem 97 anos de existência e 90% das suas ações são realizadas no distrito Raposo Tavares, em São Paulo - Divulgação/Liga Solidária

Silva aponta que uma das preocupações é manter os lares para idosos onde vivem 160 pessoas e também as escolas, com cerca de 2.000 alunos ao todo.

Na frente de combate ao coronavírus, a Liga destinará vale compras de R$ 300 para que cerca de 2.000 famílias possam comprar produtos da cesta básica e de higiene. São cartões de R$ 300 e R$ 150.

Silva avalia que a situação ainda não está desesperadora, embora a administração da ONG tenha sido pega de surpresa pela velocidade da pandemia.

“Fechamos o primeiro trimestre dentro do orçamento. Agora, temos temos pais de alunos e as famílias do idosos nos residenciais que estão com dificuldade de pagamento. Certamente haverá um impacto no orçamento da Liga, mas temos nos aberto para negociação no caso das inadimplências e buscado parcerias e compreensão de empresas e clientes”, diz.

Parceria e compreensão é o que pede o Instituto Ethos às mais de 500 empresas associadas. O Ethos é uma organização da sociedade civil cujo objetivo é incentivar e auxiliar empresas a ampliarem sua responsabilidade social.

O diretor-presidente do instituto, Caio Magri, 65, afirma que a organização está incentivando empresas a ajudar como puderem durante a pandemia. Uma das orientações é para que as do ramo industrial direcionem sua atuação para a produção de insumos hospitalares ou que possam ser úteis para os profissionais da saúde e aqueles que precisam estar nas ruas.

Outro pedido é que os associados não demitam funcionários.

A Liga Solidária tem mais de 1.700 voluntários e dez ações de voluntariado corporativo, em parcerias com empresas que não podem ajudar financeiramente mas que criam projetos de voluntariado para que os funcionários possam participar
A Liga Solidária tem mais de 1.700 voluntários e dez ações de voluntariado corporativo, em parcerias com empresas que não podem ajudar financeiramente mas que criam projetos de voluntariado para que os funcionários possam participar - Divulgação/Liga Solidária

“A demissão, em curtíssimo prazo, pode parecer boa para a empresa, mas a perda da capacidade produtiva, do conhecimento, vai embora junto com o funcionário e isso será fundamental para que essas empresas retomem seu crescimento”, diz.​

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