Descrição de chapéu Coronavírus

Coronavírus chega a pequenas cidades do Nordeste, que temem colapso

Prefeituras com poucos recursos começam a enfrentar os primeiros casos da Covid-19

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Nova Soure (BA) e Recife

A praça está vazia, a igrejinha fechada e são raras as pessoas que se arriscam a sair nas ruas do povoado Melancia, zona rural de Nova Soure (240 km de Salvador).

A 16 km da sede, o povoado, que tem cerca de mil habitantes que vivem da agricultura de subsistência e da criação de ovinos, registrou seu primeiro caso do novo coronavírus há dez dias.

"Depois que essa doença chegou, tudo ficou mais difícil. Parece que nosso povoado foi condenado ao fogo dos infernos”, disse o agricultor Alfredo Moreira, 68, que trancafiou-se dentro de casa.

A chegada da pandemia às pequenas cidades do interior de estados do Nordeste resultou em um novo desafio para prefeituras que já lidam com falta de renda e um sistema de saúde precário.

Só na Bahia, há casos registrados em 15 cidades com menos de 50 mil habitantes. Em geral, são municípios sem respiradores e leitos de UTI e que são ligados aos grandes centros por estradas esburacadas.

Em Nova Soure, a doença chegou com a médica do posto de saúde do povoado de Melancia, que mora em Salvador e atendeu 56 pacientes quando já estava infectada. A prefeitura monitora 75 casos suspeitos e mantém em quarentena outras 423 pessoas que vieram de áreas com registros da doença —incluindo o prefeito, Cássio de Souza Andrade.

Moradora do povoado Melancia, a professora Andreia Nunes, 44, testou positivo para o novo coronavírus. Sua principal preocupação, conta, tem sido evitar o contágio do marido, de 62 anos, e a mãe, de 87 anos. Ambos são considerados grupos de risco e moram na mesma casa.

“Fico com um pouco de medo porque moramos em uma região com pouca estrutura”, diz Andreia, que nos últimos dias teve febre e tosse seca, mas não sentiu falta de ar.

Nova Soure tem dez unidades básicas de saúde e um pequeno hospital, mas sem leitos de UTI. Com a pandemia, a prefeitura comprou dois respiradores e começou a implantar salas de estabilização.

“Nosso hospital foi construído há 40 anos e tem uma estrutura inadequada. Vamos trabalhar para estabilizar os pacientes mais graves até que apareça um leito em uma cidade maior”, explica o secretário municipal de Saúde Ernesto Júnior.

A situação não é diferente em outras cidades do Nordeste que começam a registrar casos do novo coronavírus, inclusive nas cidades de médio porte.

Em Paulo Afonso, cidade baiana de 117 mil habitantes que fica na fronteira com Alagoas e Sergipe, não há leitos de UTI. Com a crise, a prefeitura corre adaptar leitos de UTI com respiradores em uma Unidade de Pronto Atendimento que ainda não havia sido inaugurada.

"Estamos correndo contra o tempo para instalar esses leitos e garantir uma estrutura mínima para Paulo Afonso e outras nove cidades vizinhas que dependem da nossa rede", afirma o secretário municipal de saúde Ghiarone Santiago de Melo,

Na Paraíba, um empresário de 36 anos, dono de uma rede de farmácia, precisou viajar quatro horas numa ambulância entre Patos, cidade com 107 mil habitantes do sertão, e um hospital de referência da Covid-19 em João Pessoa.

Após apresentar um quadro de tosse, no dia 25 de março, ele foi inicialmente para uma unidade particular em Patos. Um dia depois, devido à complexidade do caso, precisou ser encaminhado para João Pessoa. Após ter sido entubado, o paciente, com histórico de diabetes, morreu no dia 31 de março.

Foram registrados ainda outros dois casos da doença no sertão paraibano. Um em Sousa, cidade com 60 mil habitantes, distante mais de 430 km de João Pessoa, e outro na vizinha Igaracy, com população de pouco mais de 6.000 pessoas. Os dois pacientes estão em isolamento domiciliar.

Na 6ª região de Saúde da Paraíba, que engloba 24 municípios do sertão, grande parte deles sem a mínima estrutura hospitalar, o hospital regional Janduir Carneiro, em Patos, recebe os doentes da região. Há apenas seis leitos de UTI.

Em Pernambuco, a doença também já chegou ao sertão. Um caso foi registrado em Ipubi, cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, distante 581 km da capital pernambucana. O paciente, com quadro estável, foi encaminhado para a cidade vizinha de Ouricuri, onde só existem leitos de UTI privados.

Ele não precisou ser levado ao Recife porque o quadro de saúde é estável e, até o momento, não houve necessidade de cuidados de terapia intensiva.

Neison Freire, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, entidade ligada ao Ministério da Educação e integra um time que faz mapeamento dos casos em Pernambuco, diz que o sistema não foi dimensionado para uma pandemia.

O pesquisador diz que é importante construir hospitais de campanha em áreas estratégicas do interior para agilizar o atendimento aos pacientes e não sobrecarregar as capitais, onde há maior número de infectados.

“O avanço da doença expõe a vulnerabilidade das regiões mais pobres e sem estrutura. Imagine uma pessoa com febre, dor no corpo, e ainda ter que percorrer, em alguns casos, 15 horas para chegar a um hospital da capital”, fala.

Nesta quarta-feira (2), o governo de Pernambuco anunciou a abertura de dez leitos em Petrolina, no sertão, dedicados à Covid-19. Um hospital de campanha com cem leitos será montado em Serra Talhada, a 430 km do Recife.

Além do impacto no sistema de saúde, o isolamento social trouxe um forte impacto para o comércio das pequenas cidades, com o fechamento de lojas e, principalmente, a proibição de feiras livres. O cenário fez com que a economia das cidades se tornasse ainda mais dependentes de aposentadorias e programas de transferência de renda.

O possível cancelamento das festas de São João deve completar o baque, já a festa é a segunda principal data do comércio nas cidades nordestinas. Cidades como Conde (PB), Conceição do Almeida (BA), Petrolina (PE) e Monteiro (PE) já anunciaram o cancelamento da festa.

As prefeituras ainda tem como desafio é fazer com que os moradores respeitem a quarentena e fiquem em suas casas. Em Nova Soure, na Bahia, agentes da prefeitura orientavam a formação de filas na entrada dos bancos lotéricas, açougues e mercadinhos.

Em geral, os moradores respeitavam às orientações da prefeitura. Mas havia exceções: na quarta-feira (1º), cinco pessoas estavam sentadas juntas debulhando feijão de corda para vender. Um jovem cumprimentou o amigo com um aperto de mão e ainda fez troça: “Comigo não tem esse negócio de bater cotovelo. Meu escudo é aquele lá de cima, é Deus”.

Ao contrário das recomendações das autoridades sanitárias, havia um grande número de pessoas, incluindo idosos, nas ruas e praças da cidade. Muitos deles são funcionários ou proprietários dos estabelecimentos comerciais que estavam abertos.

Sem poder armar sua barraca na feira, onde vende mingau, Luís Vicente de Oliveira, 60, conseguiu um trabalho temporário em um açougue: “Se pudesse, não saía. Mas tenho que sustentar minha família”, afirma Oliveira, que trabalha até o meio dia e passa o restante do dia em casa.

O vendedor de fumo de rolo Pedro dos Santos, 39, não montou sua barraca, mas tentava vender seu produto no boca a boca. Atualmente, sua única renda é R$ 180 que recebe do Bolsa-família.

No povoado de Melancia, mesmo com casos registrados, os moradores evitam as ruas, mas tem ido diariamente para suas roças. Também evitam ir à sede do município, onde ficaram estigmatizados por viverem em uma área com casos confirmados da doença.

Pessoas vindas de outras cidades também não sem bem-vindas em Nova Soure. Uma mulher sobressaltou ao ver o carro da reportagem placa da capital baiana. “Vocês são de Salvador? Deus me livre, se saiam”. E entrou em casa.

Temem pelo presente e também pelo futuro. Diz o agricultor José Tomás de Aquino, 69: “Isso é uma doença triste, pior que guerra mundial. Se sobreviver a essa, vou vender meu gado e aproveitar o dinheiro enquanto tiver vida”.

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