Descrição de chapéu Coronavírus

Da maca à cova, supostos infectados não têm direito a despedida

Corpos de mortos com suspeita de coronavírus não podem passar por necropsia nem por preparação

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Yan Boechat
São Paulo

Alícia Choque Salinas só tinha um pedido quando chegou ao Cemitério Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, no final da ensolarada manhã de sábado, dia 28.

A quem encontrava, repetia em espanhol: “Por favor, déjame ver a mi hijo”. Amparada por uma das filhas, recebia negativa sobre negativa dos funcionários do Serviço Funerário Municipal. Ela não poderia ver o filho.

Marisol traduzia para a mãe as explicações de que o corpo de qualquer pessoa que possa ter morrido por contaminação do novo coronavírus teria que ser enterrado com o caixão lacrado, sem velório.

Alícia Choque Salinas e a filha Marisol chegam para o enterro do filho de Alícia, Franz, morto com suspeita de coronavírus
Alícia Choque Salinas e a filha Marisol chegam para o enterro do filho de Alícia, Franz, morto com suspeita de coronavírus - Yan Boechat/Folhapress

Alícia, uma boliviana de 62 anos que chegara de La Paz pouco mais de duas semanas antes com o filho, parecia não escutar. “Mi hijo, déjame ver a mi hijo”.

Os sepultadores já se preparavam para levar o corpo a uma cova rasa quando um deles teve compaixão de Alícia. Antes de abrir o pequeno compartimento selado por um vidro, avisou: “Ela não vai ver nada, ele tá num saco”.

Alícia se aproximou, viu o plástico azul enrugado onde deveria estar o rosto de Franz Limache Choque, seu filho de 29 anos, e desabou num choro angustiado.

Havia sido na segunda-feira, dia 23, que Alícia e Marisol acharam por bem levar Franz para o Hospital da Cidade Tiradentes, também na zona leste de São Paulo. Ele estava com febre, calafrios, tosse e dificuldade para respirar.

“Nos disseram que era uma pneumonia, que ele ia ter que ficar internado”, conta Marisol. Na própria segunda, ele foi para a UTI. Na quinta, no final da noite, o hospital informou que ele havia morrido. “Não o vimos desde então, não nos deixaram nem mesmo dar um adeus, disseram que ele podia ter morrido por esse vírus”, diz ela, que trabalha como costureira em uma confecção da região do Brás.

Desde o dia 20 de março, enterros solitários e com nenhuma cerimônia como o de Franz têm se repetido com cada vez mais frequência pelos cemitérios de São Paulo. De acordo com uma resolução da Secretaria Estadual de Saúde, todas as mortes que tenham qualquer suspeita de estarem relacionadas com a Covid-19 precisam seguir um protocolo rígido para garantir a segurança dos profissionais que lidam com os cadáveres.

A determinação prevê que corpos suspeitos de estarem infectados pelo novo coronavírus não devem mais passar por necropsia. Seguem direto dos hospitais para as covas.

Pelas novas regras, esses cadáveres devem ser embalados em sacos plásticos, e os caixões, lacrados.
Antes, todos seguiam para o Serviço de Verificação de Óbito, que concederia o atestado da causa da morte. Agora não passam nem mesmo pelos serviços funerários de preparação do corpo.

As regras, porém, nem sempre são seguidas à risca —há casos em que chegam ao cemitério enrolados em lençóis, vazando fluidos corporais.

Foi o que aconteceu com o irmão de Luís Rodrigues de Lima, um porteiro de 65 anos morador da Cidade Líder, na zona leste de São Paulo. Antônio Rodrigues de Lima passou mal na quinta (26) e foi levado para o hospital Santa Marcelina, onde morreria no sábado (28).

“Nós achamos que se tratasse de um infarte, mas o boletim de óbito veio como suspeita de Covid”, diz ele. Ao abrir janela do caixão para dar adeus ao irmão, viu que o cadáver estava enrolado em um lençol branco, com manchas na região da cabeça causadas pelos líquidos que o corpo expele naturalmente se não for devidamente preparado.

Segundo um agente funerário que prefere se manter em anonimato, o caso não era o primeiro ali. Ele diz que em alguns lugares está faltando saco para os suspeitos de Covid.

Luís enterrou Antônio acompanhado de poucos parentes e um único amigo do irmão, morto aos 70. “É muito triste tudo isso, muito triste não poder ter nem velório”, lamentou. “Mas é mais triste ver meu irmão ser enterrado assim, todo sujo, nem uma roupa deixaram a gente colocar. Esperava que o fim fosse diferente.”

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