Descrição de chapéu Coronavírus

Famílias vivem angústias de vida e de morte atrás dos vidros no Emílio Ribas

Pacientes ficam isolados e sedados; funcionários do hospital de SP relatam medo e tensão

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O padre João Inacio Mildner, capelão do Emílio Ribas, de jaleco e máscara, na capela do hospital, com cruz ao fundo
O padre João Inacio Mildner, capelão do Emílio Ribas, que conta ter rezado em um enterro por meio de videochamada pela primeira vez - Eduardo Anizelli/ Folhapress,
São Paulo

A aposentada Austrália Maia Juvêncio, 65, perdeu o filho Renato, 46, no dia 4 de abril. Diabético, com problemas renais, o eletricista Renato pegou coronavírus e depois de uma semana morreu na UTI do Hospital São Paulo.

Austrália nem conseguiu ver o filho no quarto de hospital —por causa do risco de contaminação, só pôde ir até a recepção do local para pedir informações sobre ele.

Não teve velório, seguindo as regras do Ministério da Saúde. O enterro, no cemitério de Vila Nova Cachoeirinha, tinha apenas dez pessoas, e não durou mais que 15 minutos. “O caixão estava lacrado, nem consegui olhar para ele uma última vez”, contou a aposentada.

Agora, Austrália está na sala de espera do Instituto Emílio Ribas, de máscara e a uma distância segura de outros familiares. Vai ver seu filho Ricardo, que também pegou coronavírus e está na UTI há 26 dias. Hoje, dia 13 de abril, é aniversário dele. Ricardo faz 43 anos.

O filho de dona Austrália tocava em uma banda de música evangélica da Igreja Renascer. Além dele, três integrantes da banda pegaram coronavírus, e um deles morreu.

Quando começou a ter sintomas, Ricardo foi três vezes ao hospital geral de Vila Nova Cachoeirinha. Cada vez davam um diagnóstico diferente: primeiro era só uma dor no estômago, depois virose e, por fim, pedra no rim.

“Os médicos não sabiam, estava todo mundo despreparado”, conta a aposentada. No quinto dia, ele disse à mãe que estava muito mal e que ia morrer. Foi levado de ambulância do Samu e internado na UTI do Emílio Ribas.

“O Ricardo era diabético, mas nunca fumou, não bebe, e era atleta, ia sempre na academia.”

Ricardo chegou à UTI em situação crítica. Precisou ser intubado —os médicos introduziram um tubo na traqueia dele, ligado a um ventilador mecânico, que faz o trabalho que os pulmões não conseguem mais. Quando os pacientes estão intubados, eles não podem falar e ficam sedados. Alguns nunca acordam.

Austrália chegou a pensar que ia perder outro filho. “Foi tudo muito rápido, nossa vida virou de ponta cabeça”, disse.

Durante um tempo, nenhum familiar podia visitar os pacientes com Covid-19 internados na enfermaria ou na UTI do Emílio Ribas, que foi o primeiro hospital público de São Paulo a ter os leitos de terapia intensiva lotados com infectados pelo coronavírus.

É muito fácil se contaminar com o coronavírus. Ele é transmitido quando a pessoa encosta em algo contaminado e depois toca a boca, nariz ou olhos; e pelas gotículas de saliva, enquanto a pessoa fala ou tosse, por exemplo.

E o micro-organismo sobrevive horas ou dias na superfície de objetos como celulares, mesas, maçanetas, botão de elevador. Para evitar contaminação, foi necessário restringir o número de pessoas circulando dentro do hospital.

“Mas em muitos casos, as pessoas não conseguiam ver seus familiares pela última vez. Eles vinham, internavam o pai, o filho, se ele tinha alta, que bom; se não, o familiar nunca mais o via”, diz Sandra Conceição dos Santos, do Núcleo de Acolhimento do Usuário.

Pensando nisso, duas semanas atrás o hospital passou a deixar que familiares visitem rapidamente os doentes internados na UTI. Podem ver seus pais, esposos, filhos ou irmãos por trás de vários vidros de proteção, do quarto e da antecâmara.

As visitas são breves e ocorrem uma vez por dia. A autorização de visitas não se estende aos familiares de pacientes internados na enfermaria, que recebem informações dos médicos em uma sala do hospital.

“A UTI é o lugar onde o dia nunca termina, é dia e noite com luz, dia e noite com aqueles apitos e sinalizações da aparelhagem”, diz o padre João Inácio Mildner, 60, capelão do Emílio Ribas. “Imagina você sozinho, isolado, com uma doença que todo mundo ainda desconhece, sem apoio da família... É morrer na solidão.”

Nos 28 anos em que atua como capelão do Emílio Ribas, é a primeira vez que Mildner não pode passar pelos quartos para confortar os pacientes, como fazia todos os dias.

“Esta semana, aconteceu um fato inédito: uma família me ligou, porque tinha falecido a avó, e com essa questão do enterro urgente, foi a primeira vez que eu fiz um enterro por videochamada”, contou o capelão. “Rezei com a família pelo vídeo do WhatsApp.”

Ao longo dos anos, Mildner deu milhares de extremas-unções no leito de pacientes em estado grave. Por enquanto, nenhum familiar ou paciente com Covid-19 pediu ao padre uma extrema-unção. E se pedirem?

“Se alguém pedir, e os médicos autorizarem, eu vou dar a extrema unção no leito. Já fiz todo o treinamento de como vestir o equipamento de segurança”, diz o padre. “Eu não tenho medo. Se morrer, morro feliz, estava cumprindo minha missão.”

Os pacientes precisam de um conforto, uma demonstração de afeto. “Muitos estão assustados, eles dizem: estão falando que todos os velhos morrem dessa doença”, conta a enfermeira Lívia Correa Araújo Galbiatti, 35.

Os enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas seguram a mão dos doentes, dão banho nos pacientes, ministram os remédios endovenosos. Até a comida eles levam —o pessoal da copa, por motivos de segurança, não entrega mais as refeições no quarto. “Nós corremos riscos e temos medo, claro, o inimigo é invisível e é tudo muito novo”, diz Lívia.

O médico intensivista Jaques Sztajnbok, chefe da UTI do Emílio Ribas, costuma dizer que a equipe médica está dos dois lados do balcão. “Enquanto o enfermeiro está tratando alguém, está pensando –eu tenho família em casa, e posso estar aí nesse respirador amanhã”, diz.

Marly Angélica, 47, chefe da enfermagem da UTI do Emílio Ribas, conhece seis colegas, em vários hospitais, que estão infectados. Dos 80 enfermeiros e técnicos de enfermagem da UTI do Emílio Ribas, 13 estão afastados, entre doentes e aqueles com suspeita de Covid-19.

Marly trabalha há 22 anos no Emílio Ribas e já passou por várias epidemias –HIV, gripe suína (H1N1) e aviária. Segundo ela, com o coronavírus o risco de se contaminar é muito maior e o volume de doentes é enorme, por isso a equipe está mais ansiosa.

“A evolução é muito rápida. A pessoa começa a ter sintomas, vai no médico, piora um pouquinho e três dias depois, chega aqui de Samu e tem que ser intubada”, diz a enfermeira.

“Vejo esse pessoal fazendo protesto na rua, dizendo que coronavírus não é nada, que isolamento é besteira, e fico triste. Daqui a pouco, vão estar todos batendo aqui na porta do hospital”, diz Marly.

Alguns não têm a opção de ficar em casa. Samuel Carvalho estava no Emílio Ribas na terça-feira (13) para ver seu pai, Adão.

Adão é barbeiro, tem 65 anos. No fim de março, Adão começou a tossir, não conseguia falar de tanto que tossia. “Ele estava atendendo os clientes lá na rua 25 de Março, acho que foi assim que se contaminou”, diz o filho. Depois de alguns dias, Adão ficou com muita falta de ar, chamou o Samu e foi levado para o Emílio Ribas.

Samuel é barbeiro como o pai. Sabe que há risco de se contaminar, mas não parou de trabalhar. “Estou usando máscara e luvas, tenho medo, mas não posso parar de atender os clientes, preciso do dinheiro pra viver”, disse. “Eu me inscrevi no programa do governo, o dos R$ 600, mas ainda não saiu.”

Depois do dia em que Adão entrou na ambulância do Samu, Samuel nunca mais falou com o pai. Adão foi intubado e está em coma induzido desde que entrou na UTI. Seu estado é crítico e Samuel não tem muitas esperanças.

O filho de dona Austrália teve mais sorte. Na quarta-feira (14), Ricardo foi extubado e passou a respirar sem ajuda de ventilador mecânico. Estava lúcido. Na quinta-feira (15), ele saiu da UTI, e foi para um leito na enfermaria. “Agradeço aos médicos todo o dia”, disse Austrália.

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