Descrição de chapéu Obituário Ruth Marques Vieira (1960 - 2020)

Mortes: Apesar de limitações, amou demais e viveu como poucos

Ruth Marques Vieira tinha habilidade para escuta, perdão e demonstração de afeto

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São Paulo

Era tarde da noite quando Ruth teve sua caminhada de volta do bingo interrompida por dois jovens armados. O jogo da terceira idade era atividade indispensável ao seu cotidiano tal como a novela das nove, mas os encapuzados foram uma surpresa inédita.

Quando se preparava para entregar a bolsa com os trocados que havia ganhado, ouviu de um deles: “Dona Ruth? Não, meu, não mexe com a dona Ruth, não”.

Quem eram eles? Até hoje a família não sabe. Mas essa história Ruth contava com o sorriso de quem sabia que era benquista por todos que tiveram o prazer de conhecê-la.

Ruth Marques Vieira (1960-2020)
Ruth Marques Vieira (1960-2020) - Arquivo pessoal

Encontrou o amor de sua vida, Ludovico, na plantação de algodão na qual trabalhava em Itapetininga, no interior de São Paulo, às vésperas de completar 14 anos. De lá para cá, não perderam o encanto um pelo outro nem um dia sequer.

Cumprimentavam-se com selinho de boa noite todos os dias e, quando longe um do outro, correspondiam-se por WhatsApp com um “bom dia, meu amor”.

“Nossos pais eram vizinhos. Quando eu tinha seis anos, lembro que me falaram: ‘o bebê que nasceu naquela casa é uma menina’. Só depois eu entendi o porquê de terem me dito aquilo. Era a minha menina”, conta Ludovico.

Recém-casados, mudaram-se para Cotia, na grande São Paulo, em 1976. Nos anos seguintes, enfrentaram a pobreza e por vezes se viram sem ter o que dar de comer aos filhos. Apesar das circunstâncias, Ruth dedicava-se a atividades de caridade na igreja evangélica que frequentava e buscava oferecer suporte aos mais necessitados.

Na casa de dois cômodos, chegou a abrigar, além da família, parentes e semi-conhecidos. O gesto, questionável nos dias de hoje, dava prova de seu coração gigantesco.

Chegada a comemorações e viagens, não se deixou limitar pelas muletas, pela cadeira de rodas e nem mesmo pelo cilindro de oxigênio que, um a um, passaram a fazer parte de sua vida nos últimos anos. Foi a Minas Gerais de ônibus, conheceu o litoral carioca num cruzeiro, viajou a Porto Seguro de avião e passeou de trem pela serra gaúcha.

“Ela queria ter ido à minha viagem de formatura do ensino médio. Na época, fui a um orelhão perto de casa e implorei para o organizador dizer que não tinha mais vaga. Foi a minha sorte, porque ela telefonou pra ele logo depois”, conta Shirley, 43, sua filha mais velha, aos risos.

Apesar de declarar-se dona de casa, a cozinha e os cuidados domésticos nunca foram de seu feitio, mas sua habilidade para a escuta, para o perdão e para a demonstração de afeto a faziam cumprir o papel de matriarca com destreza. A única mágoa que nunca deixou para trás foi causada pela vizinha que um dia falou a esta repórter, aos cinco anos de idade, que Ruth era sua avó —e não sua mãe, como a chamava.

Ruth morreu no dia 27 de março, data de seu aniversário de 60 anos, sob suspeita de Covid-19. Deixa marido, quatro filhos, quatro netos e o aprendizado de que, ainda que a viagem seja para muito longe, para quem fica o que importa é a certeza de uma existência bem vivida.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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