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Sobrecarregado, Samu de Manaus empresta maca e oxigênio em troca de internação

Ambulâncias rodam até 3 horas atrás de vaga; serviço já toma decisões difíceis, como deixar de atender alguns casos

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Manaus

Às 14h23 da quarta-feira (22), três socorristas do Samu empurram a maca com Pedro pela entrada do hospital estadual 28 de Agosto, de alta complexidade. Na recepção, ouvem a resposta mais comum na rede de saúde de Manaus: não há vagas.

É uma péssima notícia para Pedro (nome fictício). Aos 69 anos e com sintomas da Covid-19, ele tem um histórico de hipertensão e diabetes e já sofreu quatro enfartes. O quadro não exige UTI, mas seu estado de saúde pode se deteriorar rapidamente. Uma unidade de complexidade média não teria recursos para socorrê-lo em uma emergência.

Experiente, a médica intervencionista Alessandra Said, 45, começa a negociar com um colega do hospital. Chega a informação de dois óbitos, abrindo vagas. Depois de 20 minutos, o hospital aceita ficar com Pedro, sob a condição de que o Samu empreste a maca e um cilindro grande de oxigênio.

“O paciente teve sorte”, diz Said. Dias atrás, ela ficou rodando com um paciente de Covid-19 por 3h15 na UTI móvel. Depois de bater em várias portas, conseguiu vaga em uma unidade de média complexidade, também em troca de maca e cilindro.

O 28 de Agosto é um dos hospitais de Manaus que passaram a receber pacientes com a Covid-19 após o colapso do hospital de referência, o Delphina Aziz.

Com o aumento de óbitos, o governo estadual instalou ali um contêiner frigorífico para armazenar os corpos de vítimas do novo coronavírus. Imagens divulgadas pelas redes sociais nesta quinta-feira (23) mostram que essa câmara já está cheia.

Concentrada em Manaus, a rede hospitalar do Amazonas foi a primeira do país a colapsar por causa do novo coronavírus. O estado registra a maior taxa de mortalidade do país: 45 óbitos por 1 milhão de habitantes. É quase o dobro dos segundos colocados, Pernambuco e Rio de Janeiro, com 24 por 1 milhão de pessoas. Os números são do Ministério da Saúde.

Com o colapso, as ambulâncias do Samu rodam com um paciente por até três horas atrás de vaga —às vezes, o tempo não é suficiente, e o óbito ocorre no veículo.

“Falta respirador [mecânico], oxigênio, equipe, maca, está faltando tudo”, diz o médico Domício Magalhães Filho, 41, diretor técnico do Samu, administrado pela da prefeitura de Manaus. "Todo mundo que chega ao hospital recebe só cuidados paliativos e fica ali para morrer.”

“Não quero criar um pânico, mas preciso demonstrar o que está acontecendo. Antes da pandemia, eram 30 enterros por dia, agora está passando de cem. Tanto as pessoas que têm síndrome respiratória aguda como as que não têm estão morrendo, porque não tem como dar assistência a mais ninguém”, diz.

Em entrevista à Folha na terça-feira (21), o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) informou que, só no domingo, 122 pessoas foram enterradas na cidade, dos quais 17% haviam morrido em casa.

“Muitos pacientes não conseguem receber atendimento, imagina testes [de Covid-19]. Tem vezes que, quando chegamos, o paciente já está em rigidez cadavérica. A gente pergunta para a família, e eles respondem: ‘Tem dez dias que ele está gripado, com falta de ar. A gente tenta atendimento e não consegue em lugar nenhum’”, diz o diretor.

Em mensagem publicada na madrugada desta quinta-feira (23), o diretor Ruy Abrahim, chefe do Samu em Manaus, classificou a situação como desesperadora.

"Todas as unidades de portas fechadas! Não aceitam mais nenhum paciente! Estamos com oito ambulâncias perambulando pela cidade, sem ter onde deixar o doente!! Restante das ambulâncias com material preso, incluindo cilindros de oxigênio", afirma.

Abrahim relata ainda que equipamentos de medição de oxigênio estão sumindo. "O que devemos fazer?? Só nos resta deixar de atender!! O que fazer??????"

Nova rotina

Lotada na Base Sul do Samu, Said afirma que o número de ocorrências não se alterou com a epidemia —o aumento de socorro por problemas respiratórios foi compensado pela diminuição de casos de acidente de trânsito e baleados.

O trabalho, no entanto, está mais exaustivo e perigoso. Cerca de 30% dos profissionais de saúde do Samu já estão afastados por contaminação pelo novo coronavírus. O restante teve de se adaptar a novos e demorados protocolos.

Agora, além do macacão do Samu, é preciso colocar outro, branco e impermeável, por cima, que cobre a até a cabeça. Sob o forte e úmido calor amazônico, o suor e o desgaste físico são inevitáveis.

Depois de cada paciente com quadro de Covid-19 transportado, é preciso fazer uma minuciosa descontaminação. O processo leva cerca de uma hora e inclui parte da vestimenta —o macacão é descartado. Antes, a limpeza tomava em torno de 15 minutos.

“Agora a gente passa muito tempo com uma ocorrência só”, afirma Said, enquanto espera a limpeza da UTI móvel. Mais tarde, ela teria de voltar ao 28 de Agosto para reaver a maca e o cilindro.

Cemitério de Manaus, que abriu valas comuns para vítimas do coronavírus
Cemitério de Manaus, que abriu valas comuns para vítimas do coronavírus - Michael Dantas - 21.abr.20/AFP

Com 11 anos de experiência no Samu, a médica diz que a Covid-19 apenas piorou um sistema de saúde precário de Manaus: “A gente passa por isso há muito tempo”. Segundo ela, já era comum emprestar macas a hospitais, embora não cilindros de oxigênio.

Para Magalhães Filho, a crise sem precedentes provocada pelo novo coronavírus vem obrigando o Samu a tomar escolhas difíceis, como deixar de atender casos de parada cardiorrespiratória.

“Infelizmente, é um raciocínio que a gente precisa internalizar. Nós, da saúde, queremos reanimar, que a pessoa volte, porque queremos fazer parte daquela vitória, mas infelizmente não tem lugar para receber esse paciente, não tem equipamento pra mantê-lo, não tem. É guerra, e guerra é assim.”

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