Descrição de chapéu Coronavírus

Decisão sobre cloroquina foi precipitada e pode trazer riscos, diz secretário que pediu demissão da Saúde

Médico e biofísico descartou participar de elaboração de documento que amplia uso de remédio para casos leves do coronavírus

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Brasília

A decisão por ampliar o uso de cloroquina também para pacientes com sintomas leves da Covid-19 foi precipitada por ocorrer sem evidências científicas sólidas e pode trazer riscos graves à saúde, avalia o secretário de ciência e tecnologia do Ministério da Saúde, o médico e biofísico Antônio Carlos Campos de Carvalho, que pediu demissão da pasta nesta semana.

À Folha Carvalho afirma que pediu exoneração na segunda-feira (18), dois dias após a saída do ministro da Saúde Nelson Teich. O debate sobre a cloroquina, diz, colaborou para adiantar a saída.

“Não participei [da elaboração do documento] e nem participaria”, afirma. “No momento em que o ministro pede para sair e as coisas começam a se agravar, com interferência direta em decisões que não se baseavam em critérios científicos, não dava para continuar.”

Para ele, a ampliação do uso do medicamento para pacientes em estágio inicial da Covid pode trazer riscos e custos desnecessários ao sistema, “sem ter a certeza de que isso vai trazer benefício aos pacientes e com os riscos de eventos adversos muito graves”.

“Se induzir arritmia em um paciente propenso, isso pode levar inclusive a óbito”, diz.

No cargo, Carvalho era responsável por monitorar e analisar o resultado de estudos existentes e avaliar, junto de um comitê, decisões de incorporações de medicamentos no SUS –justamente o que foi feito agora com a cloroquina, sem sua participação, mas com outros membros do ministério.

Ele conta que, na última semana, chegou a apresentar ao então ministro uma proposta para acelerar estudos do uso da cloroquina e hidroxicloroquina em nível ambulatorial, por meio de uma rede de hospitais de excelência vinculados ao Proadi (programa de apoio ao desenvolvimento institucional do SUS).

O estudo está em fase de recrutamento de pacientes para testes, medida que poderia ser acelerada com apoio do Ministério da Saúde, relata.

A ideia era finalizar essa etapa em duas semanas e, com os estudos em andamento, descartar ou confirmar uma nova recomendação de ampliação do uso para pacientes com casos leves. Atualmente, o protocolo do ministério abre espaço apenas para uso em pacientes graves e críticos, com acompanhamento contínuo nos hospitais.

“Encaminhamos essa proposta [de acelerar o estudo] ao ex-ministro, para ele poder levar isso às instâncias superiores. Obviamente isso não foi considerado”, afirma.

“Não posso garantir que o ministro pediu exoneração por causa disso. Ele não deu razões para os secretários e nem para a imprensa, mas acredito que esse foi o ponto de maior tensão.”

O documento que traz ampliação para o uso da cloroquina passou a ser elaborado ainda na sexta-feira (15), logo após a saída de Teich. Segundo o ministério, a mudança foi discutida no âmbito do comitê de emergência para o novo coronavírus, que tem representantes de diferentes secretarias, incluindo a de ciência e tecnologia, chefiada por Carvalho, que ainda não teve a exoneração publicada no Diário Oficial.

Três médicos coordenaram a elaboração –entre eles a atual secretária de gestão em trabalho na saúde, Mayra Pinheiro.

De acordo com Carvalho, os estudos atuais já analisados pela secretaria não têm demonstrado benefícios no uso da cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com quadro grave da Covid-19.

Ele diz ver riscos, porém, também com a indicação para pacientes no estágio inicial da doença.

“Não há uma evidência científica de que a cloroquina e a hidroxicloroquina possam trazer algum benefício nas formas leves, moderadas ou graves”, aponta.

Um dos riscos é o prolongamento do chamado intervalo QT, que indica a atividade elétrica do coração. “A duração desse intervalo é muito importante para determinar o risco de ter a​rritmias cardíacas. Qualquer droga que prolongue esse intervalo apresenta um grau de risco ao paciente.”

Para ele, é fundamental que médicos que quiserem de fato usar o medicamento peçam um eletrocardiograma para verificar a situação do paciente e minimizar os riscos.

O acompanhamento com eletrocardiograma é citado no documento divulgado pelo ministério nesta quarta, mas apenas de forma tímida. O documento prevê ainda assinatura de um termo de consentimento que informa sobre possíveis efeitos colaterais.

“A estimativa de que pessoas no mundo tenham prolongamento do intervalo QT é de uma em cada 2.000. Pode não parecer muito, mas se fizer uso em 2 milhões, já tem mil pessoas que poderiam correr o risco de ter arritmias”, diz.

“E não é só quem tem intervalo prolongado. Pessoas que já infartaram são mais propensas a desenvolver arritmias também. Se pudesse, eu aguardaria o resultado desses estudos.”

Segundo Carvalho, a mesma falta de evidências que hoje ocorre para a cloroquina se estende a outros medicamentos.

“O mundo todo está procurando uma bala de prata para resolver o problema. A bala de prata será as vacinas, porque em todos os medicamentos testados até o momento, até o tal remdesivir, o resultado é muito acanhado”, disse.

Antes da pedir demissão, o secretário diz ter feito uma apresentação ao ministro interino, Eduardo Pazuello, sobre o estágio de testes de vacinas e encaminhado e-mails a empresas à frente desses estudos dizendo que o ministério estaria disposto a continuar acompanhando o desenvolvimento, em uma tentativa de que o país seja incluído nesses estudos e oferta futura.

Para ele, as tentativas de interferência nas decisões da Saúde mostram que há uma politização profunda em torno do coronavírus, “e está faltando ciência”.

“Quando esse tipo de coisa acontece, fica impossível trabalhar. Se não interessa qual a opinião do ministério, a opinião do corpo técnico, é ‘eu quero porque quero’, torna-se impossível qualquer grau de racionalidade. É como o menino que pega bola na pelada e diz ‘acabou porque a bola é minha’.”

"Não tem médico que seja contra a cloroquina. O que queremos é ter evidência de que vai trazer benefício ao paciente", diz.

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