“Fica em casa! Que casa?”, lê-se na edição mais recente do jornal Boca de Rua, a primeira com assinatura digital em 19 anos de história. A publicação, com circulação trimestral, é feita por moradores de rua de Porto Alegre que se encarregam, das entrevistas, das fotografias e da redação dos textos.
“Eles costumam abordar aspectos em torno da vida da rua, como agressões físicas e psicológicas da sociedade, questões das mulheres e também coisas legais, como retratar uma comunidade ou família de rua”, explica a jornalista Rosina Duarte, uma das fundadoras do Boca de Rua e editora da publicação.
Depois da impressão, cada um recebe uma cota semanal para venda. A comercialização em semáforos é uma das fontes de renda dos repórteres, que também costumam recolher material reciclável, guardar carros e faxinar.
Diante da pandemia, porém, a dinâmica tradicional teve de abrir caminho para uma alternativa online.
Em razão da Covid-19, as janelas dos carros que antes se abriam nos semáforos para que motoristas comprassem o Boca, como é chamado o jornal, agora ficam fechadas. As reuniões, que eram semanais, passaram a ser quinzenais em uma praça, com o devido distanciamento entre os integrantes da equipe.
Sem casa e muitas vezes até sem água e sabão, os repórteres de rua tiveram a ideia de lançar uma versão digital do jornal com assinatura, para que possam manter parte de seu sustento e evitar que a as edições sejam suspensas.
“A sugestão de publicar online e vender a assinatura partiu deles. Colaboro com a divulgação, o formulário e o envio das edições para os assinantes”, explica Charlotte Dafol, colaboradora do Boca de Rua.
As assinaturas podem ser feitas a partir da página da publicação e custam R$ 20, mas é possível colaborar com quantias maiores. Como o jornal é digital, o exemplar enviado por e-mail para qualquer localidade. Já são ao menos 400 assinantes e a verba é dividida e distribuída quinzenalmente a 30 moradores de rua.
O jornal tem apoio da Agência Livre para a Informação, Cidadania e Educação (Alice) e a impressão, antes da pandemia, era custeada com ajuda do Sindicato dos Petroleiros do Rio Grande do Sul (Sindipetro-RS).
“Povo da rua não tem onde fazer isolamento social, pois vive em barracas nas praças ou nas calçadas”, diz o texto, que acompanha fotografias que retratam cenas na capital gaúcha, como um homem dormindo no chão e uma tenda de lona.
Na edição digital, os moradores de rua entrevistaram a médica e professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maria Gabriela Curubeto Godoy.
A entrevista foi feita durante a reunião periódica e levantou temas como aumento do preconceito, a falta de um lugar para a quarentena e a preocupação com a África, porque relataram que costumam ver notícias apenas sobre a Europa.
“Um vírus é uma fitinha de material genético. No caso do coronavírus, ela é envolvida em uma capinha de gordura cheia de “espículas” que formam uma coroa. É por isso que o sabão, mas também tudo o que tira a gordura, consegue desmanchar ele”, explicou Godoy aos repórteres.
Há reportagens ainda sobre filas nos restaurantes populares, vagas em albergues e sobre negligência em atendimento médico. Um dos textos aborda a importância do uso de máscaras.
“As máscaras evitam que as gotinhas de saliva saiam da boca da pessoa contaminada e também protegem quem não tem o vírus”, escreveram. Eles enumeram dificuldades para a população de rua aderir ao uso: preço, higienização e descarte correto, por exemplo.
De acordo com Duarte, que colabora com a edição desde o primeiro número do jornal, produzido em 2001, os textos mantêm as características da linguagem oral usada pela população em situação de rua.
“A maneira como eles falam uma notícia é mantida no texto, que é coletivo. Trabalhamos com eles os elementos básicos: o quê, quando, onde e por quê. Elementos como clareza e ética não ficam de fora. Eles sabem que, se falam mal de alguém, precisam ouvir essa pessoa e têm que ter fatos”, explica Duarte.
“O Boca de Rua é uma experiência transformadora, em todos os sentidos. Inclusive para quem lê. O jornal dá oportunidade ao leitor de ter uma visão sem filtro. Como disse um integrante, é uma pequena revolução”, diz a editora.
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