Livro sobre gripe espanhola traz semelhanças com a crise da Covid-19

Obra detalha como a epidemia de 1918 foi enfrentada dos pontos de vista médico e político

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São Paulo

Ler sobre a gripe espanhola sem ter vivido em 1918 dá uma sensação de déjà vu. É que questões como isolamento social, negação dos fatos e a sensação de que o modo de vida atual está em xeque são frequentes em "A Grande Gripe", livro do historiador americano John M. Barry.

A obra começa com a história da Universidade John Hopkins, a primeira instituição dos Estados Unidos a ensinar medicina com base científica e ter professores que faziam pesquisas em laboratório e hoje uma das principais fontes de dados da pandemia de Covid-19 no mundo.

Até o fim do século 19, os cursos de medicina não exigiam que os alunos tivessem noções de química e biologia. E era comum que médicos se formassem sem ter experiências práticas. Técnicas antigas, como sangrar o paciente, eram rotina. O conceito de que as moléstias eram causadas por microrganismos era visto com desconfiança por profissionais mais antigos.

Capa do livro "A Grande Gripe", de John M. Barry
Capa do livro "A Grande Gripe", de John M. Barry - Divulgação

Os microscópios da época não tinham capacidade para mostrar os vírus, muito menores do que as bactérias. Assim, os cientistas que combatiam a gripe lutavam contra um inimigo que não conseguiam enxergar e nem sabiam exatamente exatamente qual era.

Barry detalha como os vírus são uma máquina de invasão quase perfeita: conforme se reproduzem, surgem novas versões em um ritmo alucinante, e o corpo não consegue criar defesas na mesma velocidade. “É como enfrentar um time de futebol que troca de uniforme a cada jogada. O corpo emite um alerta para caçar jogadores de azul, mas em instantes eles passam a estar vestidos de laranja”, compara.

Além da medicina, o autor descreve o momento político da época. Quando a gripe espanhola chega aos EUA, no fim de 1917, o país está em envolvido na Primeira Guerra Mundial. O conflito é acompanhado de uma grande mobilização para que a população se engaje. Notícias sobre a gravidade da contaminação, que atingiu muitas bases militares, foram escondidas para não abalar o comprometimento das tropas, e medidas de isolamento (como fechar comércios, evitar contato social, usar máscaras) são postergadas até se tornarem inevitáveis.

Se na época a postura negacionista tinha motivação militar, hoje o esforço de alguns governos para dizer que está tudo bem parece ter como principal razão o medo de perder o poder.

Conforme a doença se espalha, algumas cidades somam tantas mortes ao mesmo tempo que não há como enterrar as vítimas. As cenas descritas no livro, de corpos se acumulando até dentro das casas, lembram o colapso funerário que ocorreu há poucas semanas no Equador.

Também houve ne época, como ocorre hoje, tentativas de culpar rivais. Boatos diziam que o vírus teria surgido na Alemanha, embora os primeiros casos tenham sido registrados em território americano. Hoje, o alvo de ataques é a China.

A crise de 1918 veio em ondas: uma primeira etapa surgiu no início do ano e foi seguida por um período de baixa nos casos. No entanto, com a chegada do outono no hemisfério norte, a doença voltou ainda mais letal. Uma terceira fase, mais branda, veio no começo de 1919.

O vírus nunca foi totalmente derrotado, mas hoje gera gripes consideradas comuns. A doença atingiu todos os continentes, e estima-se que tenha matado mais de 50 milhões de pessoas.

A humanidade superou aquela crise sem uma vacina por duas razões. De um lado, as pessoas que sobreviveram criaram anticorpos e ficaram imunes à doença, reduzindo o número de pessoas que o vírus pode infectar. De outro, em uma espécie de seleção natural, as versões mais letais do vírus foram aos poucos perdendo espaço para as mais fracas. Uma versão do vírus que mata rapidamente seus hospedeiros acaba por esgotar mais rápido o “estoque” de pessoas ao infectar, o que compromete sua própria existência.

A pesquisa sobre o que causou a gripe espanhola seguiu por décadas e acabou ajudando em uma das maiores descobertas da ciência: a do DNA.

O ácido desoxirribonucleico já havia sido identificado no século 19, mas ninguém sabia para que exatamente ele servia. Enquanto analisava bactérias em busca da causa da gripe, o pesquisador Oswald Avery (1877-1955) notou que mudanças no DNA poderiam ser relacionadas a alterações físicas nos seres vivos. Seus estudos ajudaram a guiar outros pesquisadores, que avançaram até chegar ao conceito dos genes, na década de 1950.

O livro levou sete anos para ser preparado, e a primeira edição saiu em 2004. No epílogo, escrito antes da chegada da Covid-19, Barry comenta como seria uma pandemia no cenário atual e se mostra pessimista: “Se a maioria esmagadora das bases do Exército, durante uma guerra, não impôs uma quarentena rígida o suficiente para ser benéfica, uma comunidade civil em tempos de paz é que não o faria”.


A Grande Gripe
Autor: John M. Barry
Editora: Intrínseca
608 páginas. R$ 59,90

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