Descrição de chapéu Coronavírus

Rica e elegante, Lourdes Catão teria sido competente em qualquer atividade a que se dedicasse

Socialite carioca de 93 anos morreu vítima do novo coronavírus

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Ruy Castro
Rio de Janeiro

Em novembro de 2015, Lourdes Catão desceu de um carro na porta da Livraria da Travessa, em Ipanema. Eu pedira às moças da editora que me avisassem assim que acontecesse. Era a noite de lançamento do meu livro “A Noite do Meu Bem”, sobre a noite do Rio no pós-Segunda Guerra —quando a música e o glamour se confundiam com o poder e Lourdes Catão reinava sobre a então Capital Federal.

Fui recebê-la na porta da livraria e conduzi-a pela longa fila dos autógrafos. Entre as dezenas de pessoas que a aplaudiram, não mais que uma ou duas teriam visto aquela senhora na vida real. Mas, ao vê-la passar, todos sabiam que era Lourdes Catão. Mesmo porque, aos 89 anos, conservava o rosto, o sorriso e até o penteado com que aparecia na capa do livro, numa foto tirada 60 anos antes. E nada daquilo parecia obra de um bisturi.

Lourdes Catão, em sua residência no Flamengo, em foto de 2015 - Ricardo Borges/Folhapress

Não era preciso tê-la conhecido pessoalmente. Sua lenda a precedia. Numa época, anos 40 e 50, em que 70% das mulheres brasileiras viviam na roça, dormiam cedo, criavam galinhas no quintal e nunca iam ao dentista, os colunistas e fotógrafos de jornais e revistas descreviam uma realidade quase marciana no Brasil —a das cariocas ricas e independentes, que iam sozinhas à Europa, falavam línguas, davam-se com os artistas internacionais e tomavam champanhe em boates com homens que não seus maridos. Lourdes Catão era uma delas, e essa aura, que ocupava as fantasias de suas humildes contemporâneas, não era uma coisa ruim. Décadas depois, o que caracterizava as grã-finas como ela —principalmente a independência— ficaria ao alcance de um sem número de mulheres no país.

Os colunistas sociais não davam os nomes, mas falavam da mulher, do marido e do cunhado que, quase todas as noites, adentravam juntos a boate Vogue, em Copacabana, e todos sabiam que os três formavam um casal perfeito. Ou da outra que foi retirar um vestido em sua costureira e, enquanto esperava, viu sobre a mesinha um cheque de seu marido pagando o vestido de uma amiga de ambos. Como ninguém era inocente em sociedade, não havia cobranças nem escândalo e tais cenas não levavam ao fim de um casamento. Hoje, esse panorama, imoral para as famílias do passado, passa despercebido no universo da classe média brasileira. Lourdes Catão apenas protagonizou esse panorama muito antes que ele se tornasse clichê.

A imagem da socialite fútil e inútil também não se aplicava a ela. Ao se separar de seu marido, o industrial Alvaro Catão, em 1970, foi para Nova York e se tornou uma disputada decoradora. Comprava apartamentos, reformava-os, dava-lhes seu toque de bom gosto —herança de várias gerações que a antecederam— e os revendia. E, durante três anos, foi editora de um livro-registro da sociedade brasileira. Abandonou-o por causa dos arrivistas que queriam ser citados. Os mais íntimos de Lourdes sabiam que ela seria competente em qualquer atividade a que se dedicasse.

A elite a que Lourdes Catão pertencia é vista hoje com revolta, acusada de ter produzido um país injusto e desigual. Na verdade, o país que ela conheceu era menos injusto e desigual do que o de hoje. E com a diferença de que a elite a que ela pertencia tinha todo um estofo elegante e cultural, que vinha com o dinheiro velho. A de hoje, se pode ser chamada assim, só tem o dinheiro —em notas que acabaram de sair da prensa e impressas por ela própria.

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