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Circo gaúcho tem plateia dentro dos carros durante pandemia do novo coronavírus

Artistas ficaram quase 80 dias parados sem renda da bilheteria e sem auxílio federal

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Porto Alegre

Erguendo o queixo, a garota de oito anos tem os lábios pintados com brilho. “Eu que treinei ela”, diz orgulhoso o tio, enquanto passa batom na sobrinha. Ela é a “menina dos cabelos de aço” que gira nas alturas presa pelo cabelo. Ele é o mágico e malabarista que joga e agarra bastões com fogo.

Os dois artistas deixam o trailer da família para subirem ao palco. O picadeiro receberá ainda o palhaço, a contorcionista e a trapezista; todos se revezam entre uma atração e outra, que tem números como o motoqueiro no Globo da Morte e King Kong.

Família circense em Porto Alegre tenta renda extra ao criar um circo drive-in, com vários carros ao redor do picadeiro
Família circense em Porto Alegre tenta renda extra ao criar um circo drive-in, com vários carros ao redor do picadeiro - Marcos Nagelstein/Folhapress

A apresentação no sábado frio e chuvoso de 6 de junho, na capital gaúcha, é diferente daquelas às quais a família circense está habituada.

“Quem gostar, aperta a buzina e pisca as luzes do carro”, orienta animado o apresentador Jorge Osmar Bairros, 34 —há 20 anos trabalhando no Circo Las Vegas.

Isso porque, em vez de famílias sentadas lado a lado na plateia, o público agora está dentro dos seus carros. Os veículos ficam estacionados em círculo em volta do palco, como um drive-in.

A medida foi uma maneira de poder retomar as atividades sem risco de proliferação do novo coronavírus. O circo ficou quase 80 dias parado, acumulando um prejuízo de R$ 50 mil. O valor corresponde a gastos com aluguel do terreno, laudos de segurança, pagamento da equipe e até publicidade nas emissoras de rádio locais.

“Dava uma dor no coração ver tudo vazio, as cadeiras empoeiradas. Foi triste não poder trabalhar, as contas estavam vencendo. Gosto de estar no palco e sentir o calor humano”, diz Alex Guilherme dos Santos, 28, —o mágico e malabarista que ajudava a sobrinha antes do espetáculo começar.

Um dos cinco filhos do casal fundador, Santos também é administrador do circo. O pai, Getúlio Alves dos Santos, morreu há cerca de um ano, durante a turnê por Santa Catarina, vítima da H1N1. A mãe, Maria Sirlei dos Santos, 65, agora se envolve mais nos bastidores e no cuidado dos netos.

Uma das crianças é a “menina dos cabelos de aço”, que se pintava com auxílio do tio. Isabela Ortiz dos Santos, 8, está com as aulas presenciais suspensas por causa da Covid-19. “Não tenho medo. Tudo gira”, diz, tímida, sobre seu número.

“Ela é uma criança normal. Brinca com as bonecas e faz as tarefas, que por causa do novo coronavírus chegam por WhatsApp”, conta a avó.

Com o sistema de drive-in, onde cabiam 700 pessoas sentadas agora cabem 16 carros. Se antes o ingresso custava R$ 25 por pessoa, com direito ao show mais duas horas de passaporte livre nos brinquedos do parque de diversões, agora cada carro com até cinco pessoas paga R$ 30. Os artistas fazem sete shows, entre a sexta-feira e o domingo.

O público que era acostumado a comprar pipoca e algodão doce diretamente nas barraquinhas ou com os ambulantes, agora pode pedir pelo WhatsApp: a equipe do circo, sempre usando máscaras, leva até o carro.

“Quando acabou a apresentação, descemos do picadeiro e agradecemos em frente aos carros. Deu para ver uma senhora chorando”, relembra a trapezista Giovanna Ortiz dos Santos, 19.

“Ela contou que decidiu vir ao circo depois que recebeu o auxílio de R$ 600”, conta a trapezista. Moradora das redondezas, a mulher relatou que, após receber uma cesta básica dos artistas, quis retribuir quando a verba federal caiu na sua conta.

“Nós ganhamos muita coisa dos condomínios em volta, então dividimos”, explica a artista.

O circo emprega 50 pessoas, 15 da mesma família. “Pouquíssimos conseguiram o auxílio de R$ 600. A maioria ficou sem”, diz o administrador.

Mesmo sem plateia, alguns artistas precisaram manter os treinos. “Não podia parar completamente ou o corpo começava a acostumar e a doer”, relata a contorcionista Merilyn Haychelli, 27.

Com uma roupa em cores neon, ela lembra uma “borracha” no palco. De pé, Haychelli dobra as costas para trás até pegar, com a boca, flores que estão no chão. Muitas buzinas a celebram.

Quando o motoqueiro do Globo da Morte acaba a apresentação, um garoto coloca o tronco para fora do carro dos pais, entusiasmado com aquele considerado o show mais radical. Mais buzinas substituem aplausos.

Um projeto do deputado federal Tiririca (PL-SP) tipifica artistas circenses como autônomos para que possam receber auxílios durante pandemias ou estados de calamidade. O projeto também prevê isenção de pagamento de água e luz. O projeto foi apresentado em 24 de março, mas está parado na Câmara sem tramitação.

O governo federal, por meio da Secretaria de Cultura, não tomou medidas específicas para apoiar os artistas de circo do país durante a pandemia. Procurada, a pasta citou como medidas a prorrogação de prazos para captar recursos e prestar contas em projetos em andamento, prazo para pagamento de débitos e remarcação de espetáculos.

Regina Duarte, ex-secretária, chegou a mencionar a importância do circo no seu discurso de posse. Ela citou a “risadaria feliz da criançada” diante do “pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço”.

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