Há 25 anos, Folha conversava com Paulinho Paiakan após absolvição em caso de estupro; relembre

Líder caiapó morreu nesta quarta-feira (17), no Pará, após contrair Covid-19

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O líder caiapó Bep’kororoti, o Paulinho Paiakan, morreu nesta quarta-feira (17), no Pará, após contrair Covid-19. Ele foi um dos mais aguerridos defensores da causa indígena no período da redemocratização, mas se recolheu após ter seu nome envolvido em um rumoroso caso de estupro.

Há 25 anos, ele conversava com a Folha pela primeira vez após ser inocentado por falta de provas. Em entrevista a Sérgio Dávila, o líder Paiakan falou sobre o caso e também sobre a falência de seu império de ouro e mogno à época. Três anos após a entrevista, a Justiça do Pará o condenou, em segunda instância, a seis anos de prisão.

Confira a entrevista na íntegra:

Paulinho Paiakan, liderança indígena morta por Covid-19
Paulinho Paiakan, liderança indígena morta por Covid-19 - Bruno Santos/Folhapress

"Paulinho Paiakan, 41, explorador de mogno e ouro, estuprador", não existe. Quem diz é o índio, em entrevista exclusiva concedida em sua nova aldeia, Rio Vermelho (ou Kreniediã, "lugar do buraco fechado", em caiapó), a 120 quilômetros de Redenção, cidade ao sul do Pará.

A frase inteira é falsa, afirma. A começar pelo Paulinho. Ele se chama Paulino, dado por missionários ingleses quando Paiakan nasceu e sempre entendido errado pelos brancos. Em sua língua, o nome completo é Bengororoti (a sua religião) Paiakan (um pássaro do cerrado). Não poderia dizer a idade, "porque não fazemos contagem. Tenho documento, mas com tudo inventado, dia, mês, ano", ri.

Explorador? "Mogno e ouro acabaram", responde, melancólico. O crime: "A gente erra e procura acertar depois, ter melhores ideias. Mas eu não estuprei".

Paiakan quer voltar a ser índio. Cansou do mundo dos brancos, que lhe deu fama e problemas. "É hora de ser caiapó de novo", diz. Em dez anos, ele surgiu como ecologista respeitado, enriqueceu com extração de ouro e madeira, foi acusado e inocentado de estupro e está confuso.

Índio caiapó Paulinho Paikan e sua mulher, Irekran, durante o julgamento em 1994 que o absolveu da acusação de estupro
Índio caiapó Paulinho Paikan e sua mulher, Irekran, durante o julgamento em 1994 que o absolveu da acusação de estupro - Antônio Gaudério - 29.nov.94/Folhapress

Macarrão e guaraná

Recluso em Kreniediã, o líder indígena concordou em dar entrevista exclusiva à Revista da Folha depois de quatro dias de negociações por rádio, desde Redenção. "Não confio mais na imprensa", era seu principal argumento. "Nenhum jornalista pisou nem vai pisar aqui."

Na cidade, os pilotos de avião se recusavam a descer na pista de pouso da aldeia de Paiakan sem a autorização do índio. "Sabe lá o que pode acontecer", disse um deles. Mas o cacique acabou cedendo. Uma hora de vôo num monomotor Cessna 206 depois, o índio recebeu os visitantes.

Bem-humorado e falante, junto com sua mulher, Irekran, e as filhas Oé, 11, Kokonã (ou Tânia), 9, e Maial, 6, preparou um almoço especial. Assou em folhas de bananeira um tucunaré pescado no braço do rio que circunda sua taba, fez arroz, feijão, macarrão e suco de guaraná.

(O ritual caiapó foi respeitado: primeiro, a visita se serve, depois o cacique, então os homens e, por fim, as mulheres, que alimentam as crianças em seu próprio prato. Como todo pescador, Paiakan se gaba do peixe de cinco quilos.)

Alemão e Viena

Paiakan está mais gordo e envelhecido. O índio gorotiré, da tribo dos caiapós, é cacique de duas aldeias, A-Ukre e Kreniediã, que reúnem 500 pessoas numa reserva do sul do Pará, a 1.000 quilômetros de Belém.

As terras, 32 mil quilômetros quadrados (pouco mais que a Bélgica), são ricas em ouro e mogno, madeira de lei valorizada na construção de móveis. “Aí começou nosso problema”, diz o líder dos caiapós.

O cacique despontou para os brancos nos anos 80. Aprendeu português e passou a lutar pela demarcação e preservação das reservas. Com a fama nacional, tomou aulas de inglês e viajou.

"Conheci Estados Unidos, México e Canadá. Na Europa, vi França, Espanha, Bélgica, Itália, Alemão, Inglaterra, Viena e Japão", diz. Em 1989, ganhou medalha da Sociedade por um Mundo Melhor, de Washington, categoria Proteção do Meio Ambiente.

No ano seguinte, a ONU concedeu-lhe o prêmio Global 500, pela preservação da Amazônia. Ficou amigo de Sting, Jimmy Carter e do príncipe Charles. Era tão radical na defesa do meio ambiente que chegou a romper com o lendário cacique Tutu Pombo, o primeiro caiapó a fazer negócio com os brancos.

Pombo, que morreu aos 66 anos em 1994, deixando fortuna calculada em US$ 6 milhões, abriu as terras da aldeia Gorotire, onde Paiakan nasceu e se criou. De cada mineradora e madeireira, o "coronel, como era conhecido, recebia 10% do extraído.

A-Ukre Trading Co.

Calcula-se que, no auge das atividades, os caiapós movimentavam US$ 10 milhões por ano —livre de impostos, de prestação de contas e de intermediação com o governo. A princípio contrário à riqueza de origem branca, Paiakan saiu de lá e fundou sua própria aldeia, a A-Ukre.

Então, em 1991, conheceu a milionária inglesa Anita Roddick, dona da rede de cosméticos naturais Body Shop, com lojas em 35 países. Os dois fecharam contrato para a fabricação de óleo de castanha, que a Body Shop usa em cremes.

Foi quando Paiakan fundou a A-Ukre Trading Co., em sociedade com 18 índios, que levavam 20% do lucro, dando o resto para a aldeia. Na mesma época, o cacique ouviu pela primeira vez o canto da sereia.

Na sequência, liberou o garimpo e a extração de mogno também em suas terras. Cada metro cúbico da madeira, depois de tratada, pode chegar a US$ 1.000 no mercado internacional, que tem a Inglaterra entre os principais compradores. Paiakan e sócios recebiam US$ 50.

"Foi um choque, índio não tinha noção de dinheiro", diz. "Você dá nota de cem reais, ele não sabe se é cruzado ou cruzeiro. Compra pacote de açúcar e nem espera troco." Pode ser, mas Paiakan ficou rico.

Chegou a ter casas em quatro cidades. Só andava com picapes D-20 e Tempras novos. Tinha avião próprio. Seus homens —junto com os garimpeiros brancos— eram o principal mercado consumidor de Redenção. Bebiam e brigavam muito.

Da “comunidade indígena”

"Hoje, só tem dinheiro da Body Shop e avião doado pela companhia, para uso de todos", garante. O avião é o Cessna 206, de valor estimado em US$ 50 mil, com navegação por satélite e a seguinte inscrição: "Comunidade indígena A-Ukre".

A farra acabou em dezembro do ano passado, quando a Polícia Federal expulsou garimpeiros e madereiros das terras indígenas. Os agentes receberam a incumbência de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que proíbe a exploração daquelas terras por não-índios.

Redenção, assim como os caiapós, vive dias de paupérie. Viu sua população, 120 mil habitantes, diminuir 20% —justamente a parte rica, os índios e garimpeiros. O prefeito local, Wagner Fontes, que chegou a declarar estado de calamidade pública, tenta redirecionar as atividades locais para a agricultura.

A renda atual dos caiapós é de US$ 70 mil por ano, que recebem pelos 6 mil litros de óleo de castanha que exportam para a Body Shop. E eventuais doações da entidade ecológica Conservation International. "Mas já estamos pensando", diz Paiakan.

Como a lei permite, o líder pensa em organizar a aldeia para que os próprios índios façam o garimpo e a extração. "Sempre respeitando ecologia e meio ambiente", ressalva, rápido. "Até encontrei uns índios do Amapá que estão fazendo isso."

"Satisfeito com Justiça"

Paiakan evita o assunto, mas em 1992, no auge da riqueza, foi acusado de estuprar a estudante Sílvia Letícia Ferreira. Dois anos depois, período em que cumpriu uma espécie de "prisão domiciliar" na aldeia, foi absolvido por falta de provas.

"Estou satisfeito com Justiça", diz ele, cabisbaixo, olhando para Irekran. Mas a Justiça acertou? "Não sou advogado para saber isso", responde. "Só sei que a pessoa (ele) reconheceu, tem que procurar consertar, melhorar, com amizade."

Águas passadas? Se depender de Paulinho Paiakan, sim. O cacique só quer saber agora de construir sua nova aldeia, em Kreniediã. "Vou fazer aqui um tipo de universidade caiapó, para estudar tradições, conhecimento", muda de assunto.

Quer também retomar o contato com o músico inglês Sting, adepto da causa indígena, interrompido por briga com o cacique txucarramãe Raoni. "Tem muita pessoa falando mal do Sting, diz Paiakan. "Eu não. Ele conseguiu dinheiro para índio."

Paiakan toma o lado do músico: "Raoni está muito cansado, não tem muitas idéias de ficar organizando os índios." A lembrança de outro índio famoso, o cacique xavante Juruna, eleito deputado federal nos anos 80, não o comove, também.

"Para fazer carreira de político precisa de muito dinheiro", acredita. "E desse jeito não aceito."

O líder caiapó Paulinho Paiakan aperta a mão do juiz Elder Lisboa da Costa, após ouvir sua sentença, em 1994
O líder caiapó Paulinho Paiakan aperta a mão do juiz Elder Lisboa da Costa, após ouvir sua sentença, em 1994 - Antônio Gaudério - 04.dez.1994/Folhapress

"Índio no comando"

Já FHC tem prestígio entre os caiapós. "Daqui mesmo em Kreniediã, pelo rádio, acompanhei a posse dele", diz. "É a primeira vez que o presidente da República lembra que existe índio no país", diz.

E continua: "De pessoa, achei Fernando muito inteligente, educado. Mas ele não é dez, 15, 20 Fernando. É um só, e tem muitos senadores, deputados, políticos, que pressionam para ele não apoiar o índio."

Paiakan pretende se encontrar com FHC para pedir apoio a uma ONG que está criando, "só com índio caiapó no comando". Essa, aliás, é sua diferença com a Funai. "Funai cuida do índio, mas tem branco no comando, é outro interesse", diz.

Com a organização não-governamental, ele intensificaria seu contato com índios norte-americanos, por exemplo. "Se eu tivesse faculdade, que nem o índio de lá, podia lutar de igual para igual com branco, com juiz, com garimpeiro", lamenta.

Paulinho Paiakan levanta do banco onde está e caminha até o rio. Entra e, com água pelo joelho, abre os braços, mostrando tudo em volta. "Mas índio americano não tem isso, perdeu tudo", ri. E resume o que quer:

"Todo problema é porque caiapó deixou origem. Caiapó era povo mais ecológico que tinha. Caiapó é da floresta. Fiz errado, mas quero ser de novo Bengororoti Paiakan".

Garota que acusou índio está na cadeia

Em junho de 1992, a estudante Sílvia Letícia de Luz Ferreira, então com 18, acusou Paiakan de tê-la estuprado numa chácara a cinco quilômetros de Redenção. Segundo ela, Irekran, mulher do índio, teria ajudado o marido, com torturas.

Em novembro de 1994, o juiz Élder da Costa absolveu Paiakan por falta de provas, mas concluiu que Irekran era culpada por agressão. Acontece que, pelo Estatuto dos Índios, ela não pode ser condenada por "não estar familiarizada com o costume dos brancos".

Corte. Delegacia de Redenção, três semanas atrás. A dona-de-casa Sílvia Letícia de Luz Ferreira, 21, está presa, acusada de tentar facilitar a fuga do marido, Roberto Afonso Cruz, que cumpre 19 anos por homicídio e roubo de carros. "Isso é uma calúnia culposa", brada ela de dentro de uma cela imunda, 1 m por 2 m, uma rede no lugar da cama.

Fundo falso

Segundo o delegado Aldo Gomes de Castro, ela foi presa em flagrante ao tentar entregar ao marido uma garrafa térmica com fundo falso. Ali, os policiais teriam achado uma broca, seis serras, um eletrodo e dois ferros pontiagudos. Se condenada, Sílvia pode pegar até dois anos de prisão.

"É mentira", diz ela. "A garrafa que eu trouxe era outra, não tinha nada disso". Roberto Afonso Cruz fazia parte do bando mais temido de ladrões de carro do Pará e casou-se com Sílvia em 1993. Têm uma filha de 1 ano, que ela ainda amamenta.

Diz Sílvia Letícia: "Meu marido é honesto. Nossa prisão tem tudo a ver com o Paiakan. Como vou pedir audiência no Supremo Tribunal Federal de Belém no final de agosto e pedir para reabrir aquele caso e como o Paiakan me estuprou, ele fica fazendo armação para mim".

Diz Paiakan: "Não sabia que ela estava presa. Ela pode fazer como quiser. De minha parte, não quero prejudicar ninguém, não vou continuar competindo com ninguém".

Diz o delegado Castro, 21 anos na polícia, seis anos na região, seis meses em Redenção, quatro armas no coldre (entre elas uma Magnum 44): "Aí não tem nenhum santo".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.