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Heliópolis, em SP, aposta no funk para alertar morador sobre Covid-19

Maior favela da cidade distribui máscaras e cestas básicas na comunidade, onde 70% perderam renda

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São Paulo

Voz da periferia, o funk teve um baile transformado em tragédia com a morte de nove jovens pisoteados, numa ação da PM, na madrugada de 1º de dezembro de 2019, em Paraisópolis.

Na temporada da reclusão, o gênero ganha letra pedagógica e empresta o batidão à luta para preservar vidas. Desta vez, em outra favela paulistana, a de Heliópolis.

Ao menos uma vez por semana, um caminhão percorre as vielas da comunidade ao som do “Funk Contra a Covid”, criado por Mc Lanzinho, o mesmo que, em tempos de farra, tinha gravado “Putaria do Helipa”.

Alan Pereira da Rocha, 25, o Mc Lanzinho, autor da música para alertar Heliópolis sobre a Covid-19
Alan Pereira da Rocha, 25, o Mc Lanzinho, autor da música para alertar Heliópolis sobre a Covid-19 - Marlene Bergamo - 13.jun.2020/Folhapress

Diz a nova letra: “Vamos ajudar o próximo com consciência/ Use máscara, álcool em gel, fique em casa e paciência/ Os médicos trabalhando, mas estão indignados/ Faltando respirador e os leitos superlotados/ Muitos morrendo por dia; e daí?/ É porque não é da sua família”.

Na voz de Mc Lanzinho, ressoa firme a expressão de desdém com que Jair Bolsonaro, presidente da República, respondeu a repórteres que, em 28 de abril, lhe pediam uma declaração sobre o recorde de mortes decorrentes da doença: “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?”, perguntou.

“Eu, ao menos, estou tentando fazer a minha parte. Espero sensibilizar as pessoas”, responde Alan Pereira da Rocha, 25, o Mc Lanzinho. Ele explica que, na favela, é muito mais fácil se contaminar e bem mais difícil manter a rapaziada em casa. Lanzinho perdeu a tia da mulher dele, vítima da doença.

“É bom que façam barulho com o funk porque chama a atenção dos jovens”, diz a diarista Jurema Aparecida da Silva, 56, desempregada no momento.

“Tem um bar aqui em frente que fica lotado até o sol raiar. A aglomeração só desaparece quando o pessoal da biqueira [tráfico] dá uns tiros para cima e manda todo o mundo correr”, conta ela.

Mãe de oito filhos, dos quais quatro vivem com ela, e avó de 11 netos (o caçula mora na casa dela), Jurema, evangélica, faz questão de dizer que mantém a cria sob controle.

“Moro em Heliópolis há 29 anos. Ao menos aqui em casa, [eles] me escutam.”

Localizada a 8 km do centro de São Paulo, Heliópolis surgiu como alojamento provisório para famílias removidas de duas favelas, Vila Prudente e Vergueiro, nos anos 1970.

Abriga hoje cerca de 200 mil moradores, distribuídos em 1 milhão de m². É a maior comunidade da capital, seguida por Paraisópolis, ambas na zona sul.

De acordo com um estudo da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), a maioria das famílias que vivem lá é composta por mães solos, as únicas provedoras de suas casas.

Dividindo um único cômodo de madeira com cinco familiares, a faxineira Andreia Inácio Maia, 49, é quem, nas palavras dela, “sustenta o barraco”, com um salário mínimo. “Se não fossem as doações, a gente tava passando fome.”

O lugar em que ela habita é um amontoado de 11 residências, nas quais convivem 40 famílias em situação semelhante à dela.

Num ambiente de crescente verticalização, com o empilhamento de lajes de tijolos à vista, Heliópolis ainda mantém habitações de madeira. “Por trás desses portões, tem muita casinha de pau”, diz Andreia.

Ela conta que, em 37 anos em Heliópolis, nunca presenciou momento tão difícil como este. “Nas favelas, onde falta o que comer, muitos ignoram o isolamento social e andam sem proteção alguma”, diz a moradora.

Para tentar frear a transmissão do novo coronavírus, ao menos 40 mil máscaras foram distribuídas à comunidade, segundo os cálculos de José Marcelo da Silva, 50, presidente da Ação Comunitária Nova Heliópolis, na qual estão cadastradas 8.000 famílias. As doações se estenderam a 5.000 cestas básicas e 3.000 kits de higiene. Em média, 500 marmitas são distribuídas diariamente.

Há 49 anos residindo ali, Silva detém experiência comunitária. Aos 15, ele já era voluntário do Vila Nova Futebol Clube, time de várzea que anda parado, mas está na ativa.

Estima-se que 70% dos moradores tenham perdido a renda mensal. Formada na maioria por uma população de migrantes do Nordeste, Heliópolis tinha sua economia oriunda do trabalho informal, sobretudo o das diaristas.

O líder comunitário reforça que uma fatia feminina das paulistanas se engajou no socorro a Heliópolis. Entre elas se destaca o grupo Melhor aos 50. Criado há um ano e meio com 30 mulheres na faixa dos 50 anos, o coletivo se reuniu em torno de temas como música, filosofia e consumo.

Na pandemia, o número de participantes saltou para 240, e o grupo viu uma expansão da faixa etária, que, agora, vai dos 38 aos 70 anos idade.

O leque de preocupações se abriu e, assim, nasceu o movimento Melhor em Heliópolis.

“Decidimos atuar ali porque é uma favela que não dispõe de muita ajuda”, explica a empresária Eliana Bobrow Falbel, 54, moradora dos Jardins, um dos bairros mais valorizados da capital paulista. “A procriação e o abandono são enormes. Consequentemente, muitas famílias são chefiadas por mulheres”, diz.

Conhecida como Noca, ela é uma das quatro criadoras do grupo. O dinheiro, explica, vem de doações, parcerias com empresas ou até mesmo do valor arrecadado numa rifa de joia, tudo convertido, até agora, em 10 mil máscaras, 3.000 cestas de higiene e 5.000 cestas de alimentos, entre outros produtos doados aos mais necessitados.

“Somos privilegiadas”, reconhece Eliana. “Precisamos fazer alguma coisa. Não dá para ficar bem se o outro não está.” O trabalho de ajuda, sintetiza, “é um ato de dignidade”.

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