Morre de Covid liderança quilombola do Rio

Tia Uia, 78, lutou pela criação do Quilombo da Rasa, em Búzios

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Rio de Janeiro

Quando um griô de uma comunidade tradicional morre, é como se uma biblioteca queimasse por inteiro e viesse abaixo. O termo griô vem da África Ocidental e se refere aos indivíduos que na tradição oral preservam e transmitem a memória, as histórias, as canções, mitos e outros elementos que definem a cultura de um povo, geralmente de descendência africana ou indígena.

No Quilombo da Rasa, em Búzios (RJ), uma dessas bibliotecas vivas morreu por Covid-19. Carivaldina de Oliveira Costa, 78, a Tia Uia, neta de ex-escravizada, foi internada na madrugada de terça (9), com Covid-19, mas não resistiu. Morreu na quarta-feira (10), deixando um legado de resistência e orgulho pela sua história e de seus antepassados.

Ela foi a terceira pessoa quilombola da Rasa a morrer pelo novo coronavírus naquela semana. Segundo o presidente da Associação de Remanescentes do Quilombo da Rasa e técnico de enfermagem no posto de saúde, Adriano Gonçalves, 44, cerca de 30 pessoas da comunidade estão com suspeita de infecção pela Covid-19. Cerca de 420 famílias vivem no quilombo.

Segundo o Observatório Quilombos sem Covid, há no Brasil 619 casos confirmados e 77 mortes em comunidades quilombolas. Outros 190 casos estão sendo monitorados.

O Quilombo da Rasa já foi reconhecido pela Fundação Palmares e está em fase de contestação no longo processo de titulação pelo governo federal. Tia Uia teve participação importante no estudo inicial de reconhecimento e identificação do território.

“Ela brigou até os últimos dias, mas sempre com um sorriso enorme no rosto e as portas abertas para quem fosse”, lembra Gonçalves. “Estava sempre nas reuniões, nas viagens para Brasília.”

Os antepassados da Rasa eram pessoas de Angola escravizadas e trazidas para trabalhar na Fazenda Campos Novos. Após a abolição da escravidão, elas se estabeleceram nas terras onde se situa hoje o bairro da Rasa.

Uia e seu irmão Valmir conheciam bem essa história e fundaram juntos a associação do quilombo, presidida inicialmente por ela, que passou a liderar a luta contra empreendimentos turísticos de grande porte e a especulação imobiliária no território quilombola. Procurado pela reportagem, Valmir não pôde falar. Também estava internado com o novo coronavírus.

Sobrinha de Tia Uia, a professora Gessiane Nazário, 33, reforça que a matriarca era um contraponto à “história irreal contada pelo turismo de Búzios”, que segundo ela, estigmatiza “os quilombolas da Rasa”.

“Ela me ensinou muito sobre a história da minha família, que estava esquecida. Foi minha mentora no movimento quilombola e falava da importância de eu afirmar minha identidade”, lembra. “Ela entendia a o valor da perpetuação de nossa ancestralidade e fazia questão de me ensinar músicas de antigamente. Eram músicas que os descendentes de escravizados cantavam nas roças, nos anos 40, 50. Ela dizia ‘aprende para ensinar às crianças’”.

Tia Uia deixa seis filhos, oito irmãos e a mãe, Dona Eva, de 110 anos.

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