Na zona norte de SP, improvisos tornam incerta sorte de doente com Covid-19

Pacientes com e sem Covid se cruzam no Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha e famílias ficam à deriva

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Mulher internada em sala de emergência do Hospital Geral Vila Nova Cachoeirinha

Mulher internada em sala de emergência do Hospital Geral Vila Nova Cachoeirinha Mathilde Missioneiro/Folhapress

São Paulo

Encolhida sobre uma maca, Luzia, 65, geme de dor. O ar que ela caça para respirar provoca a sensação de que seu pulmão estaria sendo rasgado, descreve.

A Folha encontrou a aposentada numa saleta diante do centro de emergência. Luzia tem Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Ela chegou de ambulância ao Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, por volta das 18h do dia 1º deste mês. Os nomes dos pacientes e de familiares que aparecem nesta reportagem foram trocados para preservar sua privacidade.

Luzia foi internada na troca do plantão médico. Cleuza, que é sogra do filho da aposentada e acompanhava a paciente, diz que a amiga “parecia infartar de tanta dor no peito”.

Com muita falta de ar, a saturação no sangue de Luzia oscilou entre 83% e 87% naquele dia. A saturação mede a quantidade de oxigênio levada pelo sangue, e o ideal é que o índice esteja acima dos 95%.

“Eu procurei a ouvidoria do hospital porque não tinha médico naquele momento para atendê-la. Quando ameacei chamar a polícia, ela foi levada para fazer tomografia”, diz.

O exame já era aguardado por Luzia. Dois dias antes, ela havia sido internada no Hospital do Mandaqui, também na zona norte, com os mesmos sintomas. Mas lá, só fez exames de sangue e eletrocardiograma. Recebeu alta.

Com a piora do quadro, diz Cleuza, a aposentada foi levada ao Cachoeirão, como o hospital é chamado na zona norte paulistana. A tomografia apontou o que todos os familiares temiam: o pulmão estava lesionado pelo coronavírus.

Só após o resultado do exame Luzia deixou a sala improvisada, onde respirou com auxílio de balão de oxigênio, e foi levada a um leito no primeiro andar do prédio, que só atende pacientes com Covid-19.

O Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha está localizado numa região da cidade de São Paulo onde o número de mortes confirmadas pelo novo coronavírus só cresce.

O distrito onde está o hospital, a Cachoeirinha, atingiu recentemente uma taxa de 95,6 mortes por 100 mil habitantes —a quinta maior da cidade, segundo a prefeitura.

Vizinho da Cachoeirinha, a Brasilândia amargava 209 mortes por Covid-19, o maior número absoluto de óbitos num distrito da capital paulista até o final de maio.

Os distritos de Mandaqui (13%), Casa Verde (29%), Limão (23%) e a Freguesia do Ó (31%), todos ao redor da Cachoeirinha, também sofrem com o avanço letal da doença.

O hospital, aberto nos anos 1990 e hoje sob o governo João Doria (PSDB), fechou a sala improvisada onde funcionou, no início da pandemia, o local apelidado de “covidário”, oposto à emergência geral.

Tinham acesso ao local pessoas com sintomas de Covid-19, como falta de ar, febre, dor de cabeça e tosse constante.

Segundo a direção do hospital, as condições improvisadas expunham os pacientes a condições insalubres, como o frio. O “covidário” foi transferido para a entrada da unidade, com cadeiras e dois consultórios que funcionam 24h.

Entrada de UTI para pacientes com Covid-19 no Hospital Geral Vila Nova Cachoeirinha
Entrada de ala de internação para pacientes com Covid-19 no Hospital Geral Vila Nova Cachoeirinha - Mathilde Missioneiro/Folhapress

À Folha, profissionais do hospital disseram que a readequação do “covidário” ajudou a conter a contaminação do corpo clínico e de pacientes de outras enfermidades.

Mas a grande preocupação dos profissionais recai no setor de emergência, localizado no térreo e que funciona de portas abertas. Segundo eles, a ala recebe pacientes com Covid-19 misturados aos internados por outras razões.

O médico Seme Sarraf, diretor do hospital há três anos, nega a situação. “Ali, só recebemos doentes com outras enfermidades. Se algum doente com Covid entra na emergência e a família não conta direito a história, ele pode ficar ali um tempo, mas logo será retirado para o local adequado.”

A Folha conseguiu acessar o espaço de forma anônima na noite do dia 1º de junho. Os seis leitos da emergência são equipados com aparelhos básicos e a separação entre eles é feita apenas por uma cortina.

Naquela noite, a reportagem acompanhou a evolução clínica de três pacientes internados na emergência: só um saiu vivo e caminhando.

Cláudia, 50, era feirante, mãe de cinco filhos. Foi internada na segunda pela família após sofrer fortes dores na cabeça e no ouvido. Segundo Ana, 31, uma de suas filhas, a equipe médica disse que ela poderia estar com Covid-19, meningite ou um problema no cérebro.

O quadro piorou, e ela morreu após sofrer uma parada cardiorrespiratória por volta das 22h. A causa da morte, dizem os familiares, foi indeterminada.

Ana disse ainda que o sobrenome da mãe foi trocado no leito. “Em vez de Nascimento, colocaram Silva. Esse tipo de erro, que parece mínimo, pode ter consequências, como dar uma medicação errada.”

Segundo a filha, a família quis submeter o corpo a autópsia, mas o procedimento foi vetado por decreto de Doria que impede a necropsia em mortes suspeitas por coronavírus. “Eu nunca vou saber do que a minha mãe morreu.”

Próximo à Cláudia, estava José, 90. Ele sofreu uma queda e foi internado no dia 29 de maio. Debilitado, foi visto pela Folha com balão de oxigênio.

Patrícia, 34, a responsável pela internação de José, disse que a situação do idoso piorou quando ele foi tirado da emergência e levado para um quarto. “Quando eu reclamei, eles pegaram o prontuário e trouxeram ele correndo de volta para a emergência.”

José foi transferido para o hospital do Mandaqui na terça (2), e morreu no dia seguinte por traumatismo cranioencefálico e complicações de síndrome respiratória aguda.

Sebastião, 44, foi o único dos casos acompanhados pela Folha que saiu vivo naquela segunda. Com ferimentos nos braços e nas mãos, o morador de rua disse ter sido internado por causa do alcoolismo. “Deram soro e injeção. Agora passaram esse remédio. Vou pegar lá no posto.”

As condições do Vila Nova Cachoeirinha na pandemia ganharam holofotes com a denúncia do técnico de enfermagem Adriano Sciogliano, que gravou vídeo alegando ter pego o coronavírus por causa das condições de trabalho.

No vídeo, que chegou ao Ministério Público, Sciogliano afirmou que faltam equipamento de proteção individual adequados e que havia ordem do hospital para não fazer exames nos funcionários com sintomas de Covid-19.

A Associação Médica Brasileira recebeu quatro denúncias de falta de EPI no Cachoeirão em março. Atualmente, segundo o hospital, 2% dos 1.070 profissionais estão afastados por causa do coronavírus.

Sarraf, o diretor da unidade, diz que abriu apuração para investigar as denúncias do técnico de enfermagem e que respondeu aos questionamentos da Promotoria. Em nota, a secretaria de Saúde negou erro no prontuário da Cláudia, mas disse buscar melhorar os processos internos.

Já Luzia saberá, ao deixar o hospital, que a mãe, de 95 anos, também pegou Covid. Foi internada. Não sobreviveu.

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