USP toma decisão inédita e expulsa jovem acusado de fraudar cotas raciais e sociais

Julgamento, com decisão unânime, é o primeiro na história da universidade; estudante tem 10 dias para apresentar recurso

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São Paulo

Um estudante do curso de relações internacionais foi expulso da USP (Universidade de São Paulo) nesta segunda (13) sob alegação de fraudar cotas raciais e sociais. Trata-se do primeiro julgamento de fraude da história da universidade em 86 anos de existência, embora outros casos tenham sido abertos para apuração.

Braz Cardoso Neto, 20, alegou ser pardo, ter ascendência negra e ser de baixa renda, mas falhou em comprovar a declaração. Cabe recurso à decisão, e o caso pode parar no Judiciário, segundo avaliaram membros do comitê. A decisão foi unânime, e determina ainda que ele não possa se matricular novamente na instituição pelo prazo de cinco anos corridos.

À comissão responsável pelo julgamento, cujo processo demorou mais de um ano, o jovem enviou fotos de pessoas negras que alegou serem seus avós, mas não compartilhou com os membros do comitê dados que comprovassem parentesco. Além disso, a ascendência não é critério para inclusão na política de cotas da universidade, na qual pesa o fenótipo (aparência).

Braz Cardoso Neto é acusado de ter fraudado cotas raciais e sociais para ingressar na USP em 2019 por meio do SISU
Braz Cardoso Neto é acusado de ter fraudado cotas raciais e sociais para ingressar na USP em 2019 por meio do SISU - Reprodução/Facebook

No âmbito social, o estudante alegou renda familiar de R$ 4.000 para quatro pessoas, sendo três responsáveis pela renda e uma dependente. No entanto, segundo investigação, o jovem viajava constantemente, inclusive para fora do país e, segundo oitivas de colegas de turma, seu meio de transporte era um carro particular.

À comissão, o jovem declarou que utilizava transporte público para o trajeto para a universidade e que a viagem a Miami, registrada em fotos nas suas redes sociais, foi um presente à mãe.

O Coletivo de Negras e Negros do Instituto de Relações Internacionais da USP, responsável pela denúncia, anexou ao processo fotos do estudante que comprovariam a suposta incompatibilidade do seu padrão de vida com a renda declarada. O próprio estudante reconheceu a autenticidade das fotos anexadas.

O estudante teve amplo direito a defesa, segundo a universidade, mas não conseguiu comprovar a renda declarada para ingresso na instituição e não enviou ao comitê as declarações de renda na íntegra.

Ao apresentar defesa, o estudante alegou estar sendo vítima de uma "patrulha" e que o Coletivo de Negros e Negras que o denunciou era ilegítimo e não dispunha de prerrogativa para o delatar.

O pai do estudante é advogado autônomo e, de acordo com regulamento da universidade, deveria apresentar, como comprovante de renda, a Decore (Declaração Comprobatória de Renda) referente a três meses anteriores a data de matrícula do denunciado. Neto comprovou, no ato da matrícula, que ele, a madrasta e o pai eram isentos do imposto de renda.

Ao ser ouvido pela comissão, o estudante não entregou todos os documentos requeridos e, as informações apresentadas foram julgadas insuficientes para atestar a veracidade das suas declarações.

No relatório que detalha a apuração e o caso, ao qual a Folha teve acesso, a comissão recomendou a expulsão do aluno da universidade por fraudar cotas raciais e sociais.

No entanto, os membros afirmam que, apesar de recomendarem a sua expulsão por fraudar a cota racial, reconhecem a validade da autodeclaração do estudante, mas citam que apenas a cor da pele não categoriza expressão racial parda.

Braz Cardoso Neto ingressou no curso de relações internacionais em 2019 por meio do SISU utilizando cotas raciais e sociais
Braz Cardoso Neto ingressou no curso de relações internacionais em 2019 por meio do SISU utilizando cotas raciais e sociais - Reprodução/Facebook

O edital do Sisu de 2019, pelo qual o estudante ingressou na universidade, esclarece que "as cotas raciais destinam-se aos pardos negros e não aos pardos socialmente brancos, conclusão que demanda a observação da cor da pele associada às demais marcas ou características que, em conjunto, atribuem ao sujeito a aparência racial negra".

Ainda de acordo com o relatório, a comissão aponta que da mesma maneira que a ascêndencia branca não resguarda negros de sofrerem racismo, a ascêndencia negra não imputa a experiência do racismo ao estudante.

Procurado pela Folha, o estudante disse que não comentaria o caso por orientação do seu pai, que o representa.

A USP resistiu a incorporar em seu vestibular as cotas raciais e sociais. O primeiro ano a ter um sistema de reserva de vagas para minorias foi 2017 (com prova para ingresso em 2018).

O sistema foi aprovado com implantação escalonada prevista para ser concluída em quatro anos. Em 2016, dos aprovados na fuvest, apenas 17% se declararam pretos, pardos ou indígenas. O percentual não foi igual entre os cursos. Em 2020, 45% dos ingressantes deveriam, segundo decisão da universidade, pertencer a uma das categorias de cotas.

A primeira universidade pública brasileira a adotar uma política de cotas foi a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) que concedeu, em 2000, cota de 50% das vagas em cursos de graduação para estudantes de escolas públicas. As cotas raciais, no entanto, só vieram pela primeira vez em 2004 pela UnB (Universidade de Brasília).

"A revelação desses casos em universidades federais e na USP mostra que é necessário um controle mais seguro do ingresso no ensino superior e por outro lado há os oportunistas dessa política pública. Isso é inadmissível. A punição deve ser a altura desse desvio", afirma Rosane Borges, doutora em ciências da comunicação e professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda da ECA-USP. ​

Juarez Xavier, professor da Unesp e presidente da Comissão de Averiguação de Autodeclaração de Pretos e Pardos da universidade, classificou a decisão da USP como acertada e necessária.

Para o docente, quando as cotas foram introduzidas, em 2012, não se previu a possibilidade de fraude. Ele diz que, apesar de o discurso comum ser de que os estudantes fraudadores são pardos e fazem confusão na autodeclaração, o que ele observa como mais frequentes fraudadores que são evidentemente brancos.

"É possível que haja problemas de comunicação e autodeclaração, mas o que se tem visto é que existe uma intencionalidade de fraudar o sistema com a crença de que não haverá averiguação ou, se houve, a pessoa não será punida."

Xavier também alerta para a omissão das universidades, o que leva, a seu ver, à exposição de fraudadores ou suspeitos de fraude nas redes sociais. "Quando a universidade não assume sua responsabilidade ela abre espaço para que se criem mecanismos de constrangimento nas redes socias."

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto dizia que a USP tem 193 anos. Mas 1827 é a data de fundação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que hoje é a Faculdade de Direito da USP. A Universidade de São Paulo com tal foi criada em 1934.

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