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Na linha de frente, funcionários do transporte são vítimas do vírus e de agressões

Especialistas e entidades cobram mudanças que vão de testagem a isolamento de motoristas em ônibus

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Motorista de ônibus no terminal Parque D. Pedro, na região central de São Paulo Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

O dia a dia de um motorista de ônibus nas cidades brasileiras sempre envolveu cargas de estresse, esforço físico, risco de acidentes e assaltos. A pandemia tornou o ofício ainda mais espinhoso.

Na linha de frente, os condutores e demais funcionários do transporte público passam o dia em aglomerações, sob alto risco de contaminação por coronavírus. Além disso, vivem ameaçados por agressões de passageiros, uma vez que se tornaram responsáveis por fiscalizar se todos estão usando máscaras. A crise no setor ainda pode causar uma onda de demissões em massa.

Para que esses funcionários continuem mantendo as cidades funcionando, especialistas e entidades de categoria alertam para a necessidade de mudanças urgentes, que vão de testagem a criação de mecanismos de isolamento e proteção.

Uma pesquisa da Coppe/UFRJ (instituto de pesquisa de engenharia da Universidade Federal do RJ) concluiu que motoristas e cobradores de ônibus têm 70% de chances de contrair o coronavírus.

Embora não haja dados centralizados sobre o impacto da Covid-19 na categoria em âmbito nacional, órgãos de classe afirmam que há uma onda de contaminação e mortes entre esses profissionais.

Levantamento do Sindmotoristas (sindicato que representa funcionários do transporte coletivo na capital paulista) registra 747 casos suspeitos, 52 mortes só em São Paulo, nove delas confirmadas e 43 aguardando resultado dos exames, além de 208 casos confirmados,

Em outros estados, pipocam notícias de mortes de funcionários dos transportes. No início de julho, o motorista Lincoln Dezenciol, 46, que atuava na região metropolitana de Curitiba (PR), morreu após continuar trabalhando na pandemia apesar de ter diabetes e trombose.

“A empresa sabia que ele era quadro de risco. Mas por opção deles ele continuou trabalhando”, diz a irmã de Lincoln, a advogada Janaína Dezenciol, 38.

Ela afirma acreditar que foi durante o trabalho que Lincoln contraiu a doença. “Tem a determinação que motoristas não podem deixar passageiros entrar sem a máscara . Quando ele virou para um senhor e falou que não podia permitir, o cara cuspiu na cara dele. Quem me garante que não foi assim que ele pegou?”

Devido ao grave quadro de sua doença, Lincoln se despediu de familiares, por acreditar que não conseguiria escapar da doença.

Ilustração Carolina Daffara

Os funcionários do transporte também temem pelo risco de infectarem suas famílias. O operador de trens do metrô de São Paulo Almir de Castro, 57, se infectou. “Quando me contaminei, o que mais me entristeceu foi que há grande probabilidade de ter infectado também minha mulher e meu filho”, diz.

A desconfiança, diz, é pelo fato de que é o único que não tem como seguir o isolamento. “A gente tem contato direto com a população, anda na plataforma [para ir de uma cabine a outra]. Quando dá uma falha, tem que acessar equipamento dentro ou próximo do trem. E pela cabine do trem, passam vários operadores por ali e a higienização não é tão perfeita”, diz o operador, que também atua no sindicato da categoria.

Até agora, apesar de centenas de infectados, foi registrada uma morte no metrô paulistano, do mecânico Armando Ramos Norberto, conhecido como Armandinho, que morreu aos 59 anos, 31 deles passados na companhia, diz a entidade sindical.

O coordenador geral do Sindicato dos Metroviários, Wagner Fajardo, cobra testagem em massa para os funcionários do metrô de São Paulo.

“Teste o metrô só passou a aplicar a partir do momento que a gente conseguiu uma liminar na Justiça, em meados de junho”, diz. “Mas não é teste indiscriminado, é só quando tem algum contactante. Mesmo assim, é um parto para a gente conseguir teste. O metrô tem critério muito subjetivo para definir quem é contactante e quem não é.”

Além disso, ele afirma que há diversos casos de idosos que estão sendo chamados para trabalhar.

Fajardo afirma que os casos de infecções, em maioria, são entre funcionários que atuam nas estações e também na segurança.

O estudo da Coppe/UFRJ verificou o risco de mais de 2.500 ocupações diferentes no país. Os 350 mil motoristas de ônibus urbanos e rodoviários no país, por exemplo, tem risco acima de 70%. O de operadores de trem é um pouco menor, de cerca de 66%.

O estudo mede três variáveis: frequência com que a ocupação expõe a pessoa a doenças, até que ponto exige execução de tarefas com extrema proximidade de outras pessoas e o quanto as ocupações exigem o contato físico com outras pessoas.

“As pessoas que trabalham no transporte, motoristas, fiscais e os próprios trocadores, bilheteiros, eles têm um risco considerado relativamente alto por conta da circunstância das atividades que realizam: são expostos a um público grande, um contato muito próximo”, diz o pesquisador Yuri Lima, do Laboratório do Futuro, do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da Coppe/UFRJ, que atuou no estudo.

O instituto emitiu uma nota técnica com recomendações para os transportes, no qual cita medidas que poderiam diminuir o risco aos funcionários.

“Em diversas cidades do mundo, como Salvador, Vancouver e Skåne, foi adotada a medida de proteção e distanciamento do motorista de ônibus através de barreira física em material plástico para isolar o assento do motorista, bem como proibição de uso dos assentos próximos ao motorista, isolados com fita sinalizadora e cartazes”, diz o estudo.

A nota também pede medição de temperatura de todos os funcionários das empresas de transporte e instrumentos de fiscalização da exigência de uso de máscaras pelos passageiros.

No transporte sobre trilhos, há funcionários da segurança para garantir o uso das máscaras. No caso dos ônibus, porém, essa responsabilidade recai sobre o motorista, que tem de dirigir e às vezes também fazer o trabalho de cobrador.

O motorista de ônibus Philippe Monguillot foi espancado até a morte na França, após cobrar o uso de máscara. No Brasil, embora mortes ainda não tenham acontecido, já há casos de agressão.

Em Minas Gerais, foram registrados ao menos dois casos, segundo o sindicato da categoria.

“Nós tivemos uma agressão na região metropolitana de Belo Horizonte, na cidade de Ibirité, na qual o motorista, ao pedir que o usuário colocasse a máscara, o mesmo não quis colocar. Aí ele entrou, agrediu o motorista com um soco, cortou até o supercílio dele”, afirmou Paulo Cesar da Silva, presidente do sindicato dos Rodoviários de BH e região metropolitana.

“Tivemos outro caso no qual o motorista fez a mesma abordagem e o usuário desceu do veículo e atirou uma pedra na direção do motorista, estourando o vidro, o estilhaço chegou a fazer uma pequena lesão. Fora isso, ameaças verbais são constantes”, acrescenta.

A crise nos transportes ainda pode deixar parcela importante desses trabalhadores desempregados. Em análise da Coppe/UFRJ, o setor de transportes terrestres, com 1,65 milhão de trabalhadores, tem risco de automação de 75%.

Começam a surgir tecnologias com objetivo de evitar a contaminação nos ônibus. A empresa Marcopolo, por exemplo, desenvolvou sistema de ar-condicionado com luz ultravioleta para os coletivos que, segundo a empresa, tem ação que poderia matar o vírus. Segundo a fabricante, poderia atuar na inativação do material genético do vírus.

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