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SP mantém remoções e vê nascer favela com 'desabrigados da quarentena'

Novos desempregados são despejados às centenas; motoristas e entregadores moram em ocupação

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Morador trabalha na construção de barraco em terreno ocupado no Parque Novo Mundo

Morador trabalha na construção de barraco em terreno ocupado no Parque Novo Mundo Lalo de Almeida/ Folhapress

São Paulo

Mãe de cinco filhos, a cuidadora Paula Evelin da Silva, 30, teve de sair às pressas de casa após uma reintegração de posse há dois anos. Desde então, ela vinha conseguindo pagar o aluguel, mas com a pandemia do novo coronavírus foi demitida e acabou na rua de novo.

Sem ter outro lugar para ir, Paula vive hoje em uma favela recém-surgida no Jardim Julieta, na região do Parque Novo Mundo (zona norte). O lugar, novamente, tem ordem de reintegração de posse marcada.

Com barracos de madeira, a ocupação onde Paula mora é formada pelas vítimas do baque na economia produzido pelo coronavírus. Gente como ela, que tinha um emprego de carteira assinada há pouco tempo como cuidadora de crianças com necessidades especiais numa escola e, de repente, se viu construindo um barraco de madeira para ter onde morar.

Estão ali também muitos que não conseguem morar em outro lugar com a renda que obtêm como motoristas, entregadores de aplicativos e operadores de telemarketing.

A favela do Jardim Julieta está prestes a entrar nas crescentes estatísticas de reintegrações de posse, remoções e despejos, que têm jogado milhares de pessoas nas ruas em um momento em que os governos pedem isolamento social para conter a disseminação do novo vírus.

Segundo o Observatório de Remoções, mantido pelo LabCidade da FAU-USP, mais de 2.500 pessoas foram removidas de suas casas por reintegrações de posse e incêndios no estado de São Paulo desde março. O número não inclui a massa de despejados por falta de pagamento do aluguel.

Com o temor de poder ser removida a qualquer momento, Paula diz que não sabe para onde irá. “Só penso nisso dia e noite, já perdi sete quilos quebrando a cabeça com isso.”.

Mateus Damasceno Nascimento, 25, trabalhava como motorista de aplicativo até pouco tempo atrás. “Tinha um carro alugado, mas com a queda no movimento tive que entregar o carro”, diz ele, que também vive no Jardim Julieta.

Em seu barraco, já há água, o que é raro na comunidade. O abastecimento é feito por mangueiras que percorrem toda a ocupação. Em um tanque coletivo, montado na calçada, os moradores revezam-se para lavar a louça.

Mãe de duas crianças, Rosileide Paranhos Rodrigues, 36, ainda não tem banheiro em casa. Atualmente, ela se sustenta colocando cordões em crachás de empresas.

Mesmo com emprego fixo, Thais de Sales, 28, se mudou com os três filhos para a ocupação após ter o salário de atendente de telemarketing reduzido. “Pagava R$ 600 de aluguel. Como tenho emprego, nem ao auxílio emergencial eu tenho direito”, conta.

Um dos coordenadores da ocupação, o motorista Luís Carlos da Silva diz haver contradição na tentativa de expulsá-los agora. “O governo quer a pessoa em casa, mas quer jogar as pessoas na rua?”, questiona.

Na quarta-feira (8), os moradores da favela receberam uma intimação de reintegração de posse relativo a pedido da gestão Bruno Covas (PSDB). A prefeitura afirmou que o terreno pertence à SP Urbanismo e será destinado à construção de 1.580 moradias para famílias “que há anos aguardam e se encontram em situação de extremo risco”.

Em nota, a prefeitura informa que a ação foi concedida pelo Tribunal de Justiça e a SP Urbanismo "vai notificar as famílias para saída pacífica em 30 dias e orientá-las sobre o atendimento oferecido na rede socioassistencial”.

O terreno será destinado a pessoas da comunidade do Violão, perto dali, também em situação de vulnerabilidade. Na atual gestão municipal, conseguiram enfim o compromisso de piroridade nas vagas. E então o terreno foi ocupado por outras pessoas.

Entidades afirmam que, no estado de São Paulo, as remoções diminuíram durante a pandemia, mas continuam ocorrendo. Isso expõe a população a maior risco de contaminação, dizem. Por isso, fizeram uma denúncia à ONU.

“A remoção sempre acaba violando direitos. Mas durante a pandemia é um crime. Estamos falando de remoções sem nenhum tipo de atendimento habitacional imediato, de pessoas sendo postas na rua em plena pandemia, expostas de uma forma muito, muito violenta”, diz a professora da FAU Raquel Rolnik, uma das coordenadoras do Observatório de Remoções.

Rolnik afirma que em diversos países as remoções foram suspensas, o que não aconteceu no Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou uma regra que impedia despejos na quarentena.

Segundo dados do Observatório, houve ao menos dois casos de remoção extrajudicial promovida por agentes privados, três remoções extrajudiciais por poderes municipais e duas remoções judiciais promovidas por privados. Outras são previstas.

A Defensoria Pública afirma ter entrado com pedido ao Tribunal de Justiça para suspender as remoções, sem sucesso. De acordo com o coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria, Allan Ramalho, o órgão tem entrado com pedidos individuais de suspensão, com resultados mistos.

“Não são incomuns casos de pessoas reintegradas sem qualquer tipo de atendimento habitacional, sem bolsa aluguel. O mais frequente é isso acontecer no caso de pessoas despejadas de propriedades particulares”, diz.

Há também muita tensão na região da Cracolândia, onde o poder público tenta desapropriar imóveis para construir moradias na chamada PPP da Habitação. A área tem empreendimentos municipais e estaduais, e há pressão para que as decisões saiam rapidamente.

“Existem cerca de 40 mandados de imissão da posse que podem ser cumpridos”, afirma Ramalho. “O que causa preocupação é que vai gerar pessoas desabrigadas e não há previsão de qualquer atendimento habitacional."

A gestão municipal afirmou que as desapropriações na Cracolândia “integram um conjunto de ações da prefeitura para recuperar aquela região e atender as pessoas em situação de vulnerabilidade e uso abusivo de álcool de drogas ali concentradas”. Segundo a gestão, a pandemia torna a redução da aglomeração urgente.

Questionado sobre sua política para reintegrações, o governo João Doria (PSDB) afirmou que “solicitou à Justiça a suspensão de todas as reintegrações de posse em que é autor durante o período de pandemia”. Segundo o governo estadual, a Polícia Militar atua, por ordem da Justiça, em apoio aos oficiais de Justiça que cumprem determinação judicial de reintegração de posse.

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