Tratamento distinto dado a Decotelli é visto como racismo estrutural

Fraude em currículo teve consequências diferentes para ministros brancos

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São Paulo

Nomeado como terceiro ministro da Educação da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido), o economista negro Carlos Alberto Decotelli deixou o governo antes mesmo de ser empossado. Descobriu-se que seu currículo, inicialmente celebrado, continha titulações falsas, entre outras inconsistências.

O fato de outros ministros do mesmo governo —Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos)— terem sido flagrados em fraudes semelhantes, mas sem sofrerem as mesmas consequências, demonstra aquilo que o advogado e professor universitário Silvio Almeida, autor de "Racismo Estrutural" (Pólen), chama de "armadilha do racismo".

"É ingenuidade ou falta de rigor analítico imaginar que um negro vai receber o mesmo tratamento de um branco, especialmente ao assumir uma posição de destaque na alta administração pública, em um dos ministérios mais cobiçados, seja por seu orçamento ou pela visibilidade que traz", avalia ele.

"O racismo está presente nas relações de poder e na política de maneira fundamental, especialmente em um contexto político conflagrado, em um governo de extrema-direita. Ele não é o primeiro ministro que mente no currículo. Mas foi tratado de maneira diferente."

Dois homens de terno, um negro e um branco, sentados em mesa de madeira
Carlos Alberto Decotelli ao lado de Jair Bolsonaro, na assinatura do seu termo de posse como Ministro da Educação em 25 de junho - Marcos Corrêa/PR

Para Almeida, a diferença no tratamento dado ao mesmo tipo de fraude curricular cometida por outros membros do governo não ameniza a gravidade do erro cometido por Decotelli, mas evidencia a falta de consciência racial do economista.

"Tivesse ele essa consciência, saberia que essas fragilidades provocadas pela sua conduta o levariam a essa tragédia pessoal. Consciência racial é uma forma de autodefesa."

Em seu currículo oficial, disponível na plataforma Lattes (criada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para agregar informações acadêmicas de pesquisadores), Decotelli anunciava ao menos duas informações falsas. Um doutorado pela Universidade Nacional de Rosario, na Argentina, cujo reitor negou que o economista tenha obtido, e uma pesquisa de pós-doutorado da Universidade de Wuppertal, na Alemanha, que a instituição informou não oferecer. O currículo foi modificado após essas revelações.

Da mesma maneira, o ministro branco Ricardo Salles inventou ser mestre em direito público pela Universidade Yale, nos EUA. Usava o título na biografia que acompanhava seus artigos. Descoberto, Salles atribuiu o falso mestrado a um erro de sua assessoria.

Já a ministra branca Damares Alves costumava se apresentar como mestre em educação e em direito constitucional e da família, sem informar as instituições nas quais teria obtido os títulos. Questionada, recorreu à religião e creditou os títulos ao "ensino bíblico".

"É escandaloso como Salles e Damares foram pegos na mesma mentira e rapidamente perdoados, sem a repercussão cruel a que foi submetido Decotelli", avalia a deputada federal negra Áurea Carolina (PSOL-MG), formada em sociologia e mestre em ciência política. "Sem relativizar o erro dele, o caso mostra como as pessoas negras são mais penalizadas que as brancas: há dois pesos e duas medidas."

Outro caso emblemático foi o da química e pesquisadora negra Joana D’Arc Félix de Sousa, que descrevia em seu currículo um diploma da Universidade Harvard (EUA), revelado inexistente. O governador branco do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também turbinou seu currículo com um diploma falso de Harvard.

A diferença no tratamento dispensado a ambos fica evidente em uma busca no Google. Realizada com as mesmas palavras-chave —“diploma”, “falso” e “Harvard”--, resulta em 3.870 ocorrências quando aliada ao nome do governador, e em 7.110 ocorrências quando aliada ao nome da pesquisadora.

Para Carolina, a desqualificação de Decotelli associada a sua mentira curricular, que é fato, tem consequências que extrapolam a individualidade do economista, atingindo as pessoas negras coletivamente.

"Isso retorna subjetivamente de maneira muito nociva e reforça o imaginário de que a juventude negra não vai conseguir sair do destino traçado para ela: precarização, baixa qualificação e distância dos mais altos níveis de formação e excelência."

Isso se deve a um processo que configura um dos maiores privilégios da branquitude, segundo a psicóloga branca Lia Vainer Schucman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e autora de "Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo" (Veneta).

Segundo Schucman, enquanto cada indivíduo branco representa apenas a si próprio e credita seus atributos positivos a conquistas pessoais, e não a privilégios de raça, por outro lado, "cada negro sabe que qualquer julgamento negativo sobre um indivíduo de seu grupo racial recai sobre todas as pessoas contidas nele".

De acordo com a pesquisadora, isso tem a ver com o próprio processo de construção social das raças, inventadas pelos brancos a partir do processo de colonização para apontar e hierarquizar grupos diferentes do seu.

"Existe uma cobrança excessiva [sobre indivíduos negros] que é uma expressão do racismo, que cria uma série de barreiras para que os negros ocupem certas posições de poder e destaque", avalia Silvio Almeira.

Para ele, os casos de pessoas negras que chegam a essas posições são jogados na conta da excepcionalidade desses indivíduos. "O racismo faz com que o negro tenha de corresponder a padrões técnicos e morais que não são exigidos dos brancos. Sobre os negros, pesa um imaginário, criado pelo racismo, de incompetência e irracionalidade, que geram desconfiança."

Sendo assim, Schucman avalia como uma expressão do racismo a defesa de Decotelli feita por Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) e irmã do ministro da Economia.

Ao declarar à Folha que Decotelli, a quem conhece há 30 anos, havia passado por achincalhe "absurdo", ela questionou: “Cadê o movimento preto, que gosta de defender? Ninguém vai defender esse preto? Quantos brancos já fizeram isso e não aconteceu nada?”.

"O movimento negro ter de responder por ele ou defendê-lo é racismo porque parte desta ideia de que qualquer um representa o grupo dos negros politicamente organizados", avalia Schucman. "Por que o movimento negro teria de defender alguém que não está alinhado aos seus princípios e bandeiras?"

Áurea Carolina avalia que muitas figuras de destaque do movimento negro denunciaram o racismo que norteou o caso Decotelli, mas questiona a ideia de que o ex-futuro-ministro da Educação represente esse grupo.

"A questão da representatividade não se sustenta se não há o compromisso com políticas de inclusão e de combate ao racismo. Assim como a presença de uma ministra mulher no governo não garante que a questão de gênero esteja sendo tratada de maneira adequada", explica, citando o caso de Damares.

Para ela, convocar uma pessoa negra para exercer uma função de relevo não quer dizer que "a condição de negritude daquela pessoa esteja sendo tratada de maneira afirmativa". Pelo contrário, afirma ela: "Ele pode ter sido chamado até para funcionar como um chamariz: veja como não somos racismo, temos até um negro no governo."

Almeida reforça esta leitura ao apontar que a raça se tornou justificação para o apontamento de Decotelli. "Apoiadores do governo se apressaram em destacar a condição racial do ministro para usá-la como argumento contra políticas de ação afirmativa."

Levantamento da agência de recolocação DNA Outplacement com base na análise de 6.000 currículos apontou que 75% dos brasileiros turbinam, deturpam ou mentem mesmo em suas apresentações profissionais. O índice é semelhante em países como Chile (72%) e Peru (78%), onde a pesquisa também foi realizada.

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) teve de corrigir seu currículo depois de revelado que ela havia cumprido créditos de mestrado e doutorado na Unicamp, mas, sem defender a tese, não tinha os títulos que descrevia.

Entre as variáveis que levaram à saída de Decotelli do governo Bolsonaro, pode-se especular sobre o peso da pasta da Educação ou a extensão das inconsistências no seu Lattes. Velez, um de seus antecessores, que errou no seu currículo na mesma plataforma 22 vezes, segundo levantamento do site Nexo, seria o contraexemplo.

Ainda que mentiras tenha tido perna curta em todos esses episódios, foi apenas no caso de Decotelli que ela lhe passou uma rasteira.

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