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100 mil mortos é um marco importante, porém impreciso

Projeções sobre o futuro e análises do presente da pandemia se baseiam em dados incertos

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São Paulo

"Errados, mas úteis” é o título de artigo publicado no fim de julho pela epidemiologista Caroline Buckee, pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard. O texto aborda os possíveis usos e as grandes limitações dos modelos epidemiológicos relacionados à Covid-19.

Como não sabemos exatamente o número de pessoas infectadas, pesquisadores precisam fazer exercícios estatísticos com os dados disponíveis para tentar mostrar a velocidade do contágio e fazer outras predições.

Há ainda o conhecimento limitado de como se dá a transmissão ou o tempo que um infectado ficará imunizado, fatores usados em diversos trabalhos estatísticos. Ou seja, os modelos já partem de estimativas, não dos dados reais, ou de premissas ainda não completamente robustas, o que reduz a precisão dos resultados.

A professora destaca que muitos trabalhos não mostram adequadamente essas incertezas, dando a falsa impressão de segurança nas conclusões.

O artigo de Buckee aborda os modelos que visam estimar o comportamento da pandemia no futuro (sejam dias ou meses à frente). Mas não são apenas esses exercícios, sofisticados em geral, que sofrem com as incertezas. Os mesmos obstáculos dificultam chegarmos à resposta da pergunta “como está a pandemia hoje?”.


No Brasil, a contabilização via secretarias estaduais de Saúde, base usada pelo consórcio de imprensa e também pelo Ministério da Saúde, aponta para 100 mil óbitos decorrentes da pandemia.

É uma marca importante, que desperta a oportunidade de fazer um balanço da extensão da doença, das ações de gestores e da população. Mas foi agora mesmo que se chegou aos 100 mil mortos no Brasil? Categoricamente, não.

Especialmente no começo da epidemia, como faltavam testes, houve óbitos por Covid-19 não registrados. Faltaram reagentes, equipes treinadas para fazer a coleta e laboratórios para analisar os testes em tempo hábil, o que causou falsos negativos.

Estimativa feita pela Folha no fim de maio mostrou que o número de mortos pelo coronavírus àquele momento poderia ser mais que o dobro do que se registrava oficialmente.

Tem havido também dificuldades na alimentação nas bases de dados pelo país —como número de casos e de mortes oficiais por dia—, que causam graves oscilações. Modelos estatísticos podem atenuar esses problemas, mas eles podem ser insuficientes quando há variações drásticas nos dados.

Há ainda mudanças tomadas ou ao menos almejadas por governos que, deliberadamente, visavam reduzir a impressão da extensão da doença —como fez o governo federal em junho, ao ameaçar sonegar dados e retirar do ar por alguns dias o portal que reunia os números da Covid-19 no país.

Influencia a análise também o desencontro de informações. Números divulgados por prefeituras não batem com aqueles informados pelos estados sobre essas mesmas prefeituras, seja por diferenças em metodologias, seja porque há atraso no repasse de informações.

Por fim, há ainda a profusão de indicadores relacionados à extensão da pandemia, como ocupação de UTIs, o já famoso R (para quantas pessoas um infectado está transmitindo o vírus), média móvel para número de mortes e casos.

Cada indicador tem suas vantagens e limitações e, muitas vezes, apontam para direções diferentes (seja por problema com os dados, seja por fatores ainda incompreensíveis mesmo para especialistas).

Essa confusão de informações desemboca numa sociedade ávida por entender a pandemia, mas com cada vez menos tempo para ler uma reportagem completa ou um informe, e então se perde a possibilidade de captar as nuances de determinados resultados.

O ponto é que não é possível dar uma resposta clara e categórica sobre a situação da pandemia. Mesmo um indicador que parece mais acurado, o volume de internações nos hospitais, capta contaminações que ocorreram dias atrás.

Estados e municípios vêm relaxando as normas para distanciamento social. Quanto vai pesar a reabertura de restaurantes no volume de contaminações? E as escolas quando voltarem? Difícil calcular.

“Modelos são limitados”, finalizou Buckee em seu texto. “Mas usados apropriadamente e entendidas as limitações, podem nos ajudar a nos guiar nesta pandemia.”

Por ora, é o que temos: nos fiar no conhecimento adquirido em 250 anos (quando se começou a entender a dinâmica da propagação da varíola na Europa), tendo em mente que haverá ajustes e mudanças nas constatações durante esta jornada —que será longa.

A resposta mesmo sobre a extensão da Covid-19 pode levar mais de um ano após o fim da pandemia, conforme disse o médico epidemiologista Eduardo Massad, da FGV, em entrevista à Revista Fapesp.

Um ano a partir de um ponto inicial que não sabemos quando será é muito tempo para esperar quando se tem ao menos 100 mil mortos contabilizados.

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