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Adeus à cidade de classe média?

Diferentes estudos revelam o crescente desinteresse em continuar vivendo nas metrópoles

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Fabián Echegaray
Latinoamérica21

Poucos casamentos explicam o avanço para a modernidade como o das classes médias e das cidades. As cidades são os epicentros do capital e da criatividade, reúnem os melhores empregos, talentos, escolas e universidades. É onde são hospedados espaços de desenvolvimento cultural, artístico e científico, onde prosperam as empresas comerciais ou tecnológicas, onde floresce a inovação social e a mobilização política progressiva dá frutos.

Estas mesmas condições favorecem a multiplicação das classes médias, atraindo setores rurais ou suburbanos com aspirações econômicas, cívicas ou intelectuais. Quanto mais urbano o contexto, mais oportunidades de mobilidade social e crescimento das classes médias; da mesma forma, o alargamento social dos costumes burgueses facilita a consolidação do espaço e do espírito metropolitano.

Metropolitanização e gentrificação social caminham juntas, um casal com vários filhos célebres. Das liberdades civis à democracia política. Da sofisticação cultural e intelectual à meritocracia como critério de recompensa educacional ou profissional. E do empreendedorismo privado às iniciativas econômicas criativas, circulares e colaborativas.

Historicamente, foram as classes médias urbanas que pressionaram os governos para melhorar seu desempenho, forçando-os a fornecer serviços de educação e saúde, uma infraestrutura adequada, um ambiente mais limpo ou políticas mais eficazes contra a inflação ou o crime. Também são elas que atuam como uma barreira ante os projetos autoritários, de impunidade judicial ou abuso fiscal. Portanto, não é pouca coisa que é destruída quando a classe média diminui e as cidades são vistas como lugares de ameaça em vez de realização pessoal e coletiva.

O fechamento da economia e o isolamento social para combater a Covid-19 desafiam dramaticamente ambos os protagonistas. As classes médias e as cidades são culpadas pela disseminação do vírus. As primeiras por importá-la como resultado de suas viagens internacionais de férias, intercâmbios ou trabalho. As segundas são culpadas por sua densidade fenomenal de construção, que representa um obstáculo para evitar aglomerações, bem como pelos hábitos de suas classes médias que tendem a utilizar áreas públicas para recreação ou sociabilidade.

As cidades concentram a imensa maioria dos casos, mas pouco se fala delas como vítimas e –portanto– candidatas a um auxílio do tesouro nacional. O auxílio pula particularmente as prefeituras metropolitanas para se dirigir à rede hospitalar, assim como as secretarias nacionais de compras, alimentos ou planejamento. Nem um peso, real ou sol para as cidades.

Socialmente, o auxílio se individualizada, contornando a classe média para se orientar aos mais pobres ou aos grandes grupos econômicos. Com exceção do Chile, onde foi aprovado um pacote de empréstimo de US$ 1,5 bilhão exclusivamente para esse segmento social, não houve assistência governamental. Na Argentina e no Brasil, a provisão de crédito para pequenas empresas (a espinha dorsal financeira de parte da classe média urbana) simplesmente não funcionou, e uma pequena fração dos destinatários foi beneficiada.

Seguindo as tendências de planejamento urbano em voga desde os anos 90, as prefeituras metropolitanas promoveram fortemente a revitalização dos centros históricos, favorecendo a concentração humana e a alta densidade residencial, inclusive como uma política de sustentabilidade ambiental. Elas incentivaram a intensa aglomeração de atividades comerciais e culturais em áreas definidas, e implementaram meios otimizados de transporte público e mobilidade coletiva. Isto resultou no fato de que, atualmente, mais de oito em cada dez latino-americanos vivem em cidades.

As políticas de planejamento urbano priorizaram a geração de condições de alta qualidade de vida na metrópole sob o pressuposto de que o tempo livre, o trabalho ou o estudo acontecem fora de casa. Trabalhar em escritórios, estudar em escolas e universidades, fazer compras em supermercados, socializar em restaurantes, cafés, cinemas e teatros, ou se exercitar nas ruas, praças ou parques. A construção de ciclovias, a recuperação de parques e praças e o alargamento das calçadas em microcentros ilustram a tendência.

Ao mesmo tempo, e tendo em vista o suposto menor uso das moradias, os novos códigos de construção civil encorajaram o minimalismo. Muitos ambientalistas defenderam este novo modelo como uma forma eficaz de reduzir os gases de efeito estufa e proteger os ecossistemas e a biodiversidade fora das cidades.

O isolamento social e o fechamento econômico eliminam dois dos mais poderosos incentivos para se viver nas cidades. Estas falências, somadas ao confinamento em apartamentos que não foram planejados para servir como espaços multitarefa 24x7, acabaram semeando na classe média a necessidade de moradias mais amplas ou o acesso a áreas verdes próximas, se não um jardim próprio, algo impossível para a grande maioria em uma megacidade. A solução é trocar a cidade grande por cidades menores ou subúrbios, principalmente se o futuro do trabalho, estudo, compras e tantos outros hábitos for mais virtual do que presencial.

De habitats irresistíveis que oferecem oportunidades profissionais, sonhos econômicos, glamour cultural, redes sociais e liberdades e direitos ampliados, as cidades se tornam sinônimo de risco de contaminação. Diferentes estudos revelam o crescente desinteresse em continuar vivendo nas metrópoles. O número de britânicos que querem viver nas cidades está diminuindo e sua percepção das cidades como espaços menos atraentes está dobrando (Ipsos-Mori). E quatro em cada dez parisienses pensam em deixar a cidade das luzes em favor das áreas rurais ou suburbanas (ENMMV/Mobile Lives Forum).

Os projetos de repovoamento rural estão ganhando força no interior da Argentina, com mais de 20 mil voluntários registrados (Fundação Es Vicis). Na cidade de São Paulo, as buscas por residências em municípios menores próximos (+124%, Imovelweb) ou no interior do estado (+340%, Grupo Zap) estão em ascensão. Os mais interessados neste êxodo urbano são as famílias e os profissionais de classe média.

Sob o sinal da pandemia, o despovoamento das cidades ocorre paralelamente ao encolhimento da classe média. Antes da Covid-19, algumas projeções apontavam que em 2030 quase 2/3 da humanidade seria de classe média em termos de despesas e renda (Brookings Institute), uma situação que vários países da América Latina já haviam alcançado na metade dos anos 2010, a partir de uma leitura generosa dos indicadores de consumo feita pelos institutos oficiais de censo e dos critérios de classificação socioeconômica. Só no Brasil, 42 milhões de pessoas passaram a povoar a “nova classe média” (IPEA; IBGE 2012).

A crise econômica subsequente abortou este movimento; a quarentena terminou de o liquidar. De acordo com a CEPAL, 29 milhões de latino-americanos deixarão a classe média para se tornarem os “novos pobres”. Endividada ou sem renda devido ao desemprego e ao desastre econômico pós-pandemia, a classe média está abandonando aluguéis e compras não essenciais, cursos e seguros de saúde privados, microempresas e entretenimento offline. São as famílias de classe média que também mais sofrem com as consequências psicológicas da quarentena, aumentando os casos de violência doméstica, depressão e divórcio, que gera novas despesas, aprofundando o empobrecimento de seus membros. Junto com este empobrecimento da classe média, a cidade está perdendo sua rede comercial e cultural.

Cidades vazias de classe média (devido à ruína financeira ou ao êxodo) significariam um retrocesso quase medieval para sociedades socialmente desiguais e polarizadas que não controlam seus governos, negligencia a cultura e a ciência, e têm suas liberdades e direitos desidratados. Como em outras latitudes, a modernização latino-americana foi alimentada por cidades e classes médias revigoradas, e continuará dependendo delas para cumprir sua promessa de progresso social, econômico e político.

Cientista político e diretor da Market Analysis, uma empresa de pesquisa de mercado e opinião pública com sede no Brasil. Especialista em temas de cultura política, comportamento social e consumo sustentável. Doutor pela Universidade de Connecticut, EUA.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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