Descrição de chapéu Coronavírus

Brasil dos cem mil mortos por Covid toca a vida assombrado por vazios

Apenas 5% dos 5.570 municípios brasileiros têm mais habitantes do que a multidão de mortos pelo coronavírus

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São Paulo

Às 5h, David e Dierlis precisaram ligar as lanternas de seus celulares. O corpo da mãe, em um caixão lacrado, tinha que ser enterrado. Não havia luz.

Apenas os dois foram autorizados a acompanhar o sepultamento de Aparecida Rodrigues Meneses, 78, no cemitério de Urânia, no interior de São Paulo. Era 7 de junho, e uma agonia de 15 dias terminava para outra começar, sem final em vista, na memória dos irmãos.

“Era como se estivéssemos fazendo alguma coisa errada. Enterrar correndo, de madrugada, com a luz do celular, sem poder nem ver minha mãe. É muito cruel”, diz o policial federal David Meneses, 43.

Assim, no escuro, Cida entrou em uma contabilidade tétrica que, neste sábado (8), cruzou uma barreira tão triste quanto colossal: segundo registros oficiais, pelo menos 100 mil pessoas morreram no Brasil por causa da pandemia do novo coronavírus. O número pode ser maior, pois há indícios de subnotificação.

Apenas 5% dos 5.570 municípios brasileiros, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), têm mais habitantes do que essa multidão de mortos que o coronavírus formou. E só 92 delas ainda não tinham, até esta sexta (7), nenhum caso registrado de Covid.

É como se um Maracanã lotado, com mais 22 mil pessoas na porta, fosse varrido do planeta. Mais do que nomes numa lista, CPFs ou um número, uma centena de milhares de vidas e histórias se perderam até aqui, muitas delas em uma escuridão de dados, de dúvidas, de protocolos confusos ou desobedecidos.

Hoje, o Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos (160 mil) em número de óbitos. Considerando que a população dos EUA é 57% maior (330 milhões ante 210 milhões), os índices chegam a ser similares.

No dia em que David e Dierlis perderam a mãe, a lista tinha então 35.026 nomes, a terceira no ranking de mortes pelo novo vírus. Ao todo, 645.771 pessoas já haviam sido infectadas no Brasil. Dois meses depois, o primeiro número triplicou. O segundo quase quintuplicou. Hoje, dos quase 20 milhões de casos registrados no mundo, mais de 14% ocorreram aqui, embora vivam no país 2,7% dos habitantes do planeta.

Negra, septuagenária e com comorbidades comuns à sua idade, apesar de forte e disposta, Cida é um retrato dos brasileiros mais atingidos pela doença. Foi enterrada poucas horas depois de morrer em um hospital público de Jales, e sem que as pessoas da pequena cidade do noroeste paulista pudessem comparecer ao velório, seguindo o novo protocolo sanitário.

“Dois meses antes, ela foi à funerária e comprou uma mortalha, a roupa que queria usar quando morresse. Depois eu soube que ela pediu para que não contassem para mim e para minha irmã”, afirma David. “Ela nem pôde usar. Foi enterrada dentro de dois sacos plásticos em um caixão lacrado.”

Apesar das regras rígidas para os sepultamentos, que lotavam cemitérios do Brasil naquele mês, o país se preparava para seguir o caminho contrário ao dos países com os maiores números de vítimas e ensaiava a reabertura das atividades econômicas, apesar de não apresentar, então, desaceleração no avanço das mortes.

Na mesma semana em que Aparecida morreu, o Ministério da Saúde, já sem um titular da pasta oficialmente nomeado, após a demissão dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, atrasava a divulgação dos dados da pandemia.

Antes anunciados às 17h diariamente, os números passaram a ser tornados públicos às 19h na gestão Teich. Após pedir demissão, e o posto passar a ser ocupado interinamente pelo general Eduardo Pazuello, o anúncio foi postergado para as 22h. Pazuello, mais cordato com os pedidos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para amenizar protocolos da quarentena e ampliar os de uso de cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid, continua no cargo.

Na véspera da morte da aposentada, no dia 5 de junho, com um mês e meio de atraso Bolsonaro inaugurava o primeiro hospital de campanha do governo federal, em Águas Lindas, Goiás.

Um longo caminho já havia sido percorrido, então, desde a primeira morte registrada por Covid-19 no Brasil: a do porteiro Manoel Freitas Pereira Filho, 62, em 16 de março, no hospital Sancta Maggiore, em São Paulo.

Quando ele morreu, o país já dava sinais de que a pandemia produziria efeitos profundos. As instituições financeiras consultadas pelo Banco Central haviam revisado suas projeções de crescimento da economia brasileira neste ano para 1,68%. O Brasil tinha, segundo o IBGE, 12,8 milhões de desempregados, índice perto de 12%. Hoje, a expectativa é de uma retração de 5,7%.

Algumas escolas fechavam as portas, prevendo reabrir em duas semanas, para evitar contaminação das crianças. Em 23 de março, passaria a vigorar no estado de São Paulo uma quarentena que mudou a vida de seus habitantes, fechando inclusive escolas, que permanecem sem aulas presenciais até agora.

Ainda assim, em Urânia, nada parecia fora do lugar. As perdas que o país começava a acumular chegavam até a cidade apenas pela televisão e pela internet.

Foi dessa forma que seus moradores puderam ver naquele 24 de março, Bolsonaro criticar, em pronunciamento de rádio e televisão, governadores e a imprensa pelo o que considerou um clima de histeria implantado no país. No mesmo dia, o presidente referiu-se à doença como “uma gripezinha”.

Como os parentes de Manoel, toda a família de Aparecida contraiu o vírus. David, Dierlis, nora, genro e as netas da aposentada foram contaminados. Febre baixa, perda de olfato e paladar, diarreia, dores de cabeça e no corpo, falta de ar, os efeitos variaram entre eles, mas ninguém escapou de alguma forma dos sintomas.

O caso de Aparecida, no entanto, evoluiu mal. O que ajuda a explicar sua morte é uma espécie de tempestade inflamatória provocada pela Covid-19 em diversos órgãos.

As mortes são ligadas à síndrome respiratória aguda grave. Isso significa que grandes áreas de inflamação e edemas se formam no pulmão, dificultando a respiração.

David Meneses, sua irmã Dierles e a tia ao lado da cadeira em que Aparecida, sua mãe, se sentava todos os dias; na cadeira, o cachorro de Aparecida
David Meneses, sua irmã Dierles e a tia na casa onde vivia a mãe, morta na pandemia - Elisa Rodrigues/Folhapress

O pulmão não é o único órgão a ser afetado. Pesquisadores descobriram que o vírus se aproveita de uma proteína (a ACE-2, em inglês, ou ECA-2, em português) na membrana das células para fazer a invasão. Essas proteínas também estão presentes em células do coração, dos rins e até no intestino.

A infecção é mais preocupante e mais letal em quem tem doenças cardíacas prévias. Hipertensão, diabetes e obesidade, entre outras, podem elevar ainda mais o risco de morte.

Aparecida não tinha problemas sérios de saúde e mesmo assim não conseguiu se salvar. No dia em que foi levada de ambulância para o hospital de Jales, nem David, nem a irmã, os dois em quarentena, puderam se despedir. A poucas casas de distância, Dierlis via a mãe pela última vez.

A angústia de David não era menor. “A última coisa que ela me falou aqui em Urânia foi: ‘Filho, eu não quero ir. Eles vão me levar, vão me intubar e eu vou morrer’”, afirma. “Minha mulher foi até lá e minha mãe disse: ‘Tenho um dinheirinho embrulhado em casa, acho que não vou voltar’.”

Ninguém da família nunca mais veria ela viva.

Essa é apenas uma das dores que os parentes das vítimas têm que carregar. A despedida é como um filme em que falta parte das cenas, um processo que não encontra nunca seu caminho natural.

Um mês antes da morte de Aparecida, no interior de São Paulo, Magnólia Rodrigues, 48, se tornava viúva, no Rio. Em 6 de maio, seu marido Celso Rodrigues de Souza, 49, morreu após 16 dias internado em um hospital privado na Barra da Tijuca.

Era o fim de um caminho para o casal que havia deixado pra trás a pobreza e a comunidade do Esqueleto, na zona oeste carioca, para se estabelecer na Barra, após anos de trabalho conjunto. O país registrava no dia da morte de Celso 7.921 óbitos causados pela Covid-19 —menos do que as mais de 8.400 mortes que registra hoje, sozinha, a cidade do Rio de Janeiro.

O que viria a se tornar item indispensável nas ruas de todas as cidades brasileiras, a máscara, ainda não era uma realidade na vida dos brasileiros. Em São Paulo, o governo acabara de divulgar as regras para o uso obrigatório em todo o estado. No Rio, a prefeitura tratava de se defender da repercussão negativa por ter distribuído desconfortáveis, e sem eficácia comprovada, máscaras de papelão para os cariocas.

 Magnolia com com os filhos Felipe e Larissa na casa em que vivia com o marido, no Rio
Magnolia com com os filhos Felipe e Larissa na casa em que vivia com o marido, no Rio - Zo Guimaraes /Folhapress

Na Barra, a família de Magnólia havia seguido à risca as regras de proteção. Ela, Celso e o casal de filhos evitaram saídas desnecessárias. Não foi suficiente para que Celso continuasse vivo.

“‘Você é tão linda....eu te amo’. Foi A última coisa que ele me disse [durante a internação]”, diz Magnólia. “É uma separação brutal, injusta...você se separa para sempre da pessoa quando ela é internada.”

Dias após a morte de Celso, Magnólia teve que procurar um médico. “Passei a sentir muita dor, física, dor de verdade, pela ausência dele. Comecei a tomar [o ansiolítico] Rivotril”, afirma. “Todo dia eu tinha a nítida sensação que ele ia chegar, entrar por aquela porta. Até o dia em que tive que me olhar no espelho e dizer pra mim mesma: ‘Ele não vai voltar mais, nunca mais’.”

O DJ e promotor de eventos Adipe Miguel Neto, 39, soube disso assim que seu pai Adipe Filho, 64, foi internado. Uma doença autoimune já comprometia cerca de 70% do pulmão dele. “Na noite em que ele foi internado, o médico me chamou para dizer que era praticamente irreversível”, diz.

O pai de Adipe morreu após três dias na UTI, no dia 6 de abril. “Esses três dias dele sozinho me perseguiram por muitos dias. Será que ele se sentiu amado, acolhido, ele viu o filme da vida dele passar? Você fica sem saber nada disso”, afirma.

À dor de David, Dierlis, Magnólia e Adipe milhares de outros brasileiros ainda iriam se juntar. Entre eles, a psicóloga Paula Severo, 36, o marceneiro Moisés Antônio de Oliveira Prestes, 40 e a pedagoga Anna Magdalena Santana, 38, assim como uma tribo Guarani inteira em Angra dos Reis.

Professor de engenharia florestal, na Unesp, de Botucatu, Elias Taylor Durgante Severo, 64, não tinha nenhum problema de saúde, diz Paula, sua filha. Morto no dia 3 de julho, passou uma semana internado, período em que chegou a melhorar, mas acabou não resistindo. “Ele era meu porto seguro, o que amparava a gente na vida, nos protegia”, afirma.

A psicóloga conta que Elias seguia à risca a quarentena, mas um dia, cansado do isolamento, acabou saindo de casa e se expondo ao risco. “As pessoas precisam saber que não estão seguras. Bastou um dia para ele”, afirma. “Vai levar muito tempo para cicatrizar.”

Anna  Magdalena segurando foto com imagem do marido, que morreu há cerca de um mês de Covid-19
Anna Magdalena segurando foto com imagem do marido, que morreu há cerca de um mês de Covid-19 - Folhapress

O marceneiro Moisés Antônio de Oliveira Prestes, 40, nem espera que cicatrize. Há quatro anos, sua mãe morreu em seus braços. Neste sábado, completará um mês que ele se viu em frente ao corpo de seu pai, Reinaldo de Oliveira Prestes, 73, na UTI do Hospital Geral de Cotia, na Grande São Paulo.

“Fui atrás de informações e quando cheguei ao hospital, uma médica disse que não tinha notícias boas. Eu ouvi o que ela dizia, mas não conseguia processar. Eu quis ver, quis tocar no meu pai. Não acreditava”, afirma.

Mais velho de cinco filhos, coube a ele informar a família, pela segunda vez em sua vida. “Desabei. Eu tenho que ser a referência para os outros [irmãos]...Fui testemunha e portador das duas piores notícias de toda a vida deles”, diz.

No dia seguinte à morte de Reinaldo, os 26 anos de convivência de Anna Magdalena Santana, 38, com o marido César Augusto Severo, 46, chegaram ao fim da pior maneira possível. Além do casal, a filha também contraiu o novo coronavírus. Sabrina Santana Severo, 15, e o pai foram internados no HRAN (Hospital Regional da Asa Norte), em Brasília.

“No dia em que a Sabrina teve alta, estava no Uber, quando ele me ligou para avisar que iria ser intubado. Ele já sabia o que ia acontecer...começou a ligar para a família e se despedir, eu fiquei sabendo depois”, diz Anna. “A única coisa que pedi quando ele morreu foi que não colocassem ele naquele saco, que não enrolassem ele naquele saco.”

Em Angra dos Reis, a maior aldeia indígena do estado do Rio de Janeiro, dos guaranis Sapukai, vive o luto coletivo pela morte do cacique Domingos Venite, 68, no dia 21 de julho. Segundo a prefeitura, há 340 indígenas na aldeia, 85 contraíram a doença. “No começo da pandemia, fizemos palestra, pensamos em bloquear a entrada, mas infelizmente as pessoas foram saindo de suas casas. Muita gente teve que sair para receber o auxílio emergencial”, diz o professor indígena Algemiro da Silva Mirim.

Pouco menos de cinco meses separam o registro da primeira vítima de Covid-19 do dia em que o país ultrapassou a marca das 100 mil mortes. Nesse período, o número dos que tiveram sua infecção por Covid confirmada beira os 3 milhões —apenas três cidades brasileras, São Paulo, Rio e Brasília, têm mais moradores do que isso.

Se estiver correto o índice de subnotificação estimado pelo estudo Epicovid19, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), o Brasil que retoma as atividades presenciais pode guardar mais do que todo um Chile de infectados, 20 milhões.

Na economia, os reflexos da pandemia se tornaram mais claros. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego de 12% chegou a 13,3%. No segundo trimestre deste ano, 8,9 milhões de brasileiros perderam o trabalho.

Enquanto vê o número de mortes subir sem parar, o país e o mundo esperam pela chegada de uma vacina. No Brasil, o estado de São Paulo se prepara para começar a produzir ainda neste ano o imunizante, em uma parceria do Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac.

Na semana em que ultrapassamos 100 mil perdas, Bolsonaro assinou medida provisória que destina R$ 1,9 bilhão para a compra de outra vacina, testada pelo laboratório AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. Disse também ter a consciência tranquila e que fez "o possível e o impossível" para salvar vidas no país.

Sobre as 100 mil mortes, o presidente disse que é preciso "tocar a vida" e aconselhou que se busque uma maneira de "se safar" da doença.

De uma forma ou de outra, todos os entrevistados nesta reportagem cumprem o que aconselha Bolsonaro e tocam a vida. O que não apaga as seguintes notícias:

“Sua mãe não aguentou, David. Ela morreu.”

“Me dá sua mão, Adipe. Agora você precisa segurar na mão de alguém. Seu pai faleceu.”

“Seu marido...ele faleceu, Magnólia. Sinto muito.”

“Moisés, seu pai acabou de falecer.”

Magdalena entendeu antes de ouvir. “Ele não precisou dizer nada. Apareceu na minha porta com os olhos vermelhos. O meu irmão nunca chora. Sabia que meu marido estava morto.”

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