Frio em SP ameaça 'cidade paralela' de sem-teto expostos à Covid-19

Quanto mais juntos para se proteger das baixas temperaturas, moradores de rua ficam mais sujeitos ao contágio

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No Belenzinho, cerca de 80 pessoas vivem em barracas no espaço de 100 metros Marlene Bargamo/Folhapress

São Paulo

Uma barraca de lona azul com uma faixa do Corinthians e um crucifixo na frente, na rua João Tobias, sem número, bairro Belenzinho, sem CEP, em São Paulo.

Até esta terça-feira (25) —dia em que a cidade pode registrar a temperatura mais baixa do ano (8º C)—, este ainda é o primeiro e único endereço que Maicon Dias, de 10 meses e sem teto, teve na vida.

Ao lado dos pais Maicon Dias e Daiane, o bebê é uma das quase 80 pessoas que se dividem em cerca de 100 metros de calçadas. Ele faz parte também de um grupo bem maior: o dos cerca de 25 mil moradores de rua de São Paulo.

É uma espécie de cidade paralela que o frio dos últimos dias tratou de juntar ainda mais e deixar exposta ao contágio do novo coronavírus. O vírus já causou mais de 115 mil mortes no país, 11 mil delas apenas na capital paulista.

São Paulo permanece em estado de alerta devido às baixas temperaturas desde o dia 20 de agosto. No sábado (22), duas pessoas em situação de rua foram encontradas mortas na região central da cidade. A suspeita é que morreram em decorrência do frio recorde da madrugada.

O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirmou em sua redes sociais que desde o dia 20 cinco moradores de rua morreram.

Daiane, 27, Maicon Dias, 35, e Maicon Dias, 10 meses, moram em uma barraca, no Belenzinho, em São Paulo. Na foto, eles se cobrem com cobertores para aguentar o frio fora da barraca
Daiane, 27, Maicon Dias, 35, e Maicon Dias, 10 meses, moram em uma barraca, no Belenzinho, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

De acordo com o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), no sábado, os termômetros marcaram 8,2ºC na estação meteorológica do Mirante de Santana (zona norte). Segundo o instituto, era a menor temperatura desde 2013, quando os termômetros registraram 7,6 °C, no dia 15 de agosto.

Em áreas mais afastadas do centro, as temperaturas foram ainda mais baixas. Na estação meteorológica do Inmet no Sesc Interlagos (zona sul), a mínima foi de 7,8 °C, também a menor do ano.

Enquanto isso, onde a família Dias mora, o zíper quebrado impede que a barraca de camping seja fechada. Para tentar deixar seus ocupantes longe da chuva, foi instalada uma lona azul.

Dentro, um colchão, cobertas, Maicon pai, Daiane, Maicon filho e o cachorro Phelps. Fora, um fogareiro, panelas, uma cadeira, duas faixas do Corinthians e um crucifixo com um dos pés de Jesus quebrado.

“O frio é ruim, mas a chuva é que pega. Esses dias em que estava frio e chovendo, aí sim foi dureza. A gente passa a noite segurando a lona para não voar e entrar água”, diz o carroceiro Maicon Dias, 35.

Por ali, a situação só não é pior porque os sem-teto recebem o auxílio da Igreja Católica, personificada em padre Júlio.

Na noite de domingo (23), quando o religioso foi até o local e distribuiu cobertores e leite achocolatado, muitos estavam sem máscara e eram repreendidos pelo religioso.

A 5 km, na praça da Sé e no Pateo do Collégio, a ajuda também chega de grupos voluntários variados. O improviso e a aglomeração são ainda maiores. O número de pessoas dormindo apenas com um cobertor de estopa também.

Quanto mais estão juntos, mais protegidos do frio e ao mesmo tempo sujeitos a maior exposição e contágio do novo coronavírus. Na disputa entre se manter aquecido ou a salvo da infecção, porém, ganha a necessidade mais urgente.

“Medo eu tenho, mas tô acostumado a dormir por aqui. No abrigo tem hora pra entrar, pra sair, e não pode usar droga”, diz Clodoaldo Lopes da Silva, 44, gaúcho de Caxias do Sul, bem em frente à escadaria da catedral.

Também são comuns frases como: “nossa resistência é maior porque moramos na rua”, “quem mora na rua não pega isso tão fácil” ou “aqui a gente tem que pensar em outros problemas primeiro”.

Em frente ao Pateo do Collégio, no parapeito de uma das janelas do prédio do Tribunal de Justiça, um homem que pede para não se identificar monta “seu apartamento” todo dia depois que o sol se põe. Para ele não é uma questão de estar protegido ou não pela suposta imunidade adquirida nas ruas, mas sim de duvidar da existência do vírus.

Assim, o homem, de 39 anos, repete um discurso negacionista que se espalha como rastilho de pólvora. “Eu não vejo as notícias na TV como você, mas será que isso existe mesmo? Tenho dúvidas”, diz.

De acordo com censo da prefeitura, há 24.344 moradores de rua na cidade de São Paulo, dos quais 7.002 estão no grupo de maior risco e têm mais de 50 anos, e 2.210 têm mais de 60 anos. Do total, 12.651 vivem em situação de rua —os demais, em abrigos.

Mesmo o frio e o risco de contrair o novo coronavírus não impedem que esse contingente continue a crescer com novos moradores de rua.

Na madrugada de segunda-feira (24), Marco Antônio de Oliveira, 52, dormia pela primeira vez na praça da Sé. Fora de casa, então, havia três dias, chorou ao receber um prato de sopa das mãos de uma voluntária.

Dependente químico, o homem dizia desejar a morte. Foi abraçado pela jovem.

A poucos metros de Marco Antônio, no Pateo do Collégio, o mineiro Flávio Donizete Silva, 43, diz que isso não é incomum por ali. "Tem dias que eu acordo, oro e peço a Deus que me leve. Já deu. É muito sofrimento", afirma. Contra o frio, tudo o que ele tinha era um cobertor.

A Prefeitura de São Paulo afirma que disponibiliza 101 centros de acolhida para pessoas em situação de rua, com um total de 24.267 vagas. No momento, há mais de 1.400 vagas de acolhimento disponíveis.

Segundo a adminsitração Bruno Covas (PSDB), durante a situação de emergência causada pelo frio, foram criadas 1.222 novas vagas de acolhimento, sendo 672 em oito equipamentos em centros esportivos, outras 400 em quatro Centros Educacionais Unificados (CEUs), utilizados durante a Operação Baixas Temperaturas, e 150 vagas para hospedagem de idosos em situação de rua já acolhidos na rede socioassistencial, em três hotéis na região central da cidade.

Os equipamentos funcionam 24 horas, são voltados a diversos públicos e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informa que há vagas sobrando.

Segundo a pasta, são intensificadas as abordagens às pessoas em situação de rua quando a temperatura atinge o patamar igual ou inferior a 13°C, ou sensação térmica equivalente. "Caso a pessoa não aceite o acolhimento, a administração municipal oferece um kit lanche e cobertor."

Em nota, a prefeitura afirma que "desde o início do Plano de Contingência para situações de Baixas Temperaturas 2020, em 6 de maio, a rede socioassistencial realizou 1.161.777 acolhimentos. No período de plantão (noite/madrugada) da Coordenação de Pronto Atendimento Social (CPAS) foram realizados 10.275 acolhimentos, 977 recusas, 5.798 cobertores e 6.300 lanches foram distribuídos na cidade".

Assim, entre os que chegam e os que querem sair das ruas, Maicon passa seu primeiro inverno.

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