Medo de família e governo ainda deixa lésbicas invisíveis

Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, celebrado neste sábado (29), joga luz em violências contra essas mulheres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Juliana, 32, educadora física; neste sábado (29) é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica

Juliana, 32, educadora física; neste sábado (29) é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

A empresária Patrícia, 56, acha que, ao sair do armário, vai perder seus clientes. A musicista Débora, 56, teme ser acusada de assédio sexual. Já a advogada Andreia, 40, vê a mãe depressiva. E o medo da educadora física Juliana, 32, é ser uma decepção para os pais dela.

Essas quatro mulheres lésbicas, cujos nomes foram trocados para preservar suas identidades, dizem que não podem expressar o que são porque perceberam um clima mais hostil contra suas existências.

É contra essa hostilidade que, neste sábado (29), é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data foi criada em 1996 durante o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), no Rio.

De lá para cá, ficou decidido que o dia seria usado para denunciar, além da invisibilização, todas as formas de violência sofridas pelas lésbicas.

A advogada Ananda Puchta, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB do Paraná, afirma que a pauta lésbica sempre ficou em segundo plano no Brasil porque “tudo o que a mulher fala precisa ser respaldado por um homem”.

Nos anos 1980, Patrícia teve a coragem de enfrentar o pai quando percebeu que amava mulheres. Passou por sessões de “cura gay”, teve o telefone de casa grampeado e foi forçada a sair do país para virar mulher heterossexual.

A guerra familiar só terminou quando os pais dela morreram. Dona de um pet shop há 25 anos na capital paulista, a empresária notou que desde a ascensão do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) deixou de ser ela mesma.

“Eu percebi que as pessoas começaram a expor livremente seus preconceitos”, afirma ela. “A sensação é muito ruim porque é como se eu tivesse que me esconder.”

A empresária não fala abertamente que é lésbica desde que viu a postagem de uma cliente dela nas redes sociais contrária à adoção de crianças por casais LGBTs.

A mesma sensação tem a musicista Débora. Ela não enfrentou preconceitos em casa por causa de sua orientação sexual. Chegou a se casar com um homem, mas viu que tinha mais atração por mulheres.

É na escola pública de artes, em São Paulo, onde leciona música para crianças de 7 a 12 anos, que a professora precisa entrar no armário. “E não é por causa dos meus colegas, mas pelos pais dos meus alunos”, conta.

Débora diz que mantém uma relação de muita proximidade com as crianças que, durante as aulas, trocam abraços, beijos e sentam no colo dela. “Eu senti que, se eu falasse que sou lésbica, teria a minha afetividade questionada. É muito louco, mas penso que posso até ser acusada de assédio sexual”, afirma.

Para Suane Soares, pesquisadora de questões lésbicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o medo da professora paulista faz sentido. “Ser tachada de predadora sexual de crianças é mais um estereótipo associado à imagem das lésbicas”, diz.

Soares explica que a sociedade, sendo machista e patriarcal, molda os indivíduos para que eles cumpram determinados papéis na manutenção desse sistema.

E qual é o papel da mulher?, questiona a pesquisadora. “É o de subserviência, preservação da família e da linhagem masculina”, diz. “Mas as lésbicas são um erro do patriarcado porque não reproduzem esse modelo.”

A educadora física Juliana lembra que lésbicas como ela são aceitas quando têm seus corpos fetichizados. “Também já ouvi que uma mulher ama outra porque tem carência e fraquezas”, afirma.

E é por meio da violência que o sistema atua para corrigir a disfunção lésbica, explica Soares. As táticas mais usadas são o estupro corretivo, o apagamento ideológico e a exclusão delas no mundo do trabalho e da família.

De acordo com o Dossiê Lesbocídio no Brasil, que mapeia mortes violentas de mulheres lésbicas, 126 casos foram identificados de 2014 a 2017 —a maioria deles (82) ocorreu no interior do país.

Eide Paiva, pesquisadora do campo da lesbianidade na Uneb (Universidade do Estado da Bahia), quase entrou nas estatísticas de violência só por ser lésbica.

Em 2006, ela recebeu uma carta anônima que dizia o seguinte: “você vai ser currada, esquartejada e jogada no mato”. Naquela ocasião, a pesquisadora estava à frente de grupos feministas que discutiam a violência contra as mulheres em Conceição do Coité (a 218 km de Salvador).

Paiva expôs a ameaça, ganhou aliados, fez mestrado sobre o tema e, hoje, forma professores em questões de diversidade.

Para Soares, da UFRJ, não basta apenas colocar a letra L à frente da sigla LGBT, uma conquista que completou 12 anos. “É preciso garantir políticas públicas para as lésbicas. O emprego, por exemplo.”


Depoimentos: por que eu ainda sou invisível?*

Juliana, 32, educadora física
Minha família é muito conservadora. Descobri que gostava de mulher aos 16, quando fui "cantada" por uma. Depois disso, engatei um namoro com uma amiga que durou 13 anos. Nesse período todo, inventei muitas histórias para mantê-la perto de mim.

Eu cheguei a convencer um casal de amigos gays a fingir ser namorado meu e dela --os pais da minha ex também têm preconceitos. Eu trabalho em academias e já presenciei alunos não querendo fazer aulas com professoras lésbicas. Isso me dói porque a vontade é dizer que eu também sou uma delas. Enquanto eu morar com os meus pais, terei de ficar no armário.

Juliana, 32, educadora física
Juliana, 32, educadora física - Karime Xavier/Folhapress

*

Débora, 56, musicista
A música me deu liberdade para ser quem eu quisesse. Segui o script: me casei com um homem, mas descobri que gostava mesmo era de mulher. Não sofri preconceitos em casa por ser lésbica. Minha família sempre tratou muito bem a mim e a minha atual esposa.

O problema é o meu trabalho. Ensino música para crianças de 7 a 12 anos. Trocamos muito carinho durante as aulas. Recebo abraços, beijos e muitos dos meus alunos sentam no meu colo. O meu medo é sofrer algum tipo de retaliação ao dizer aos pais dessas crianças que sou lésbica. Venho assistindo a onda conservadora que toma o Brasil. É louco o que eu vou dizer, mas o meu pânico é ser acusada de assédio sexual só por eu ser lésbica. Não suportaria.

Débora, 56, musicista
Débora, 56, musicista - Karime Xavier/Folhapress

*

Patrícia, 56, empresária de Pet shop
Eu fui muito inocente quando contei ao meu pai que gostava de mulher. Era adolescente e, a partir dali, a minha vida virou um inferno. Ele passou a me perseguir, grampeou o telefone de casa, me forçou a passar por sessões de terapia para eu virar heterossexual e, por fim, me mandou para fora do país.

Quando eu retornei ao Brasil, fui encontrar a minha namorada e o que aconteceu? Meu pai me seguiu, entrou no apartamento dela e a ameaçou. Ele disse a ela: você sabe que muitas pessoas morrem atropeladas e ninguém sabe quem foi. Ela desapareceu da minha vida, claro. Anos depois, meus pais morreram e eu fiquei mais sozinha. Nunca falei que sou lésbica para o meu irmão.

Patrícia, 56, empresária
Patrícia, 56, empresária - Karime Xavier/Folhapress

*

Andreia, 40, advogada
Meu pai é pecuarista e muito envolvido com política. Eu nunca contei oficialmente à minha família que sou lésbica. Quando saí de casa para estudar, em Ribeirão Preto (SP), comecei a namorar mulheres. Meu pai se mudou para a minha casa de propósito e dificultou muito a minha vida durante seis meses.

Ele imprimiu uma foto minha e mostrava aos donos dos bares próximos de casa para saber se eu beijava mulheres ali. A minha libertação veio quando me tornei advogada e independente financeiramente dele. Criei uma start-up que vale R$ 15 milhões, tenho um sítio no interior de Minas Gerais e sou casada com uma mineira.

Quando meus pais me visitam, a minha esposa precisa sair do nosso quarto. Eu sei que essa situação toda é muito difícil para ela. Eu não sei até onde isso vai. Não sei se a a minha mãe suportaria saber sobre mim. Eu já a vi em crises profundas de depressão.

A única pessoa da minha família que sabe sobre a minha orientação sexual é a minha irmã. Eu queria que toda a minha família conhecesse o outro lado da minha, que já divido com meus amigos há anos.

Mas não sei quando isso vai acontecer, sinceramente.

Andréia, 40, advogada
Andréia, 40, advogada - Karime Xavier/Folhapress

*nomes são fictícios para preservar a identidade das entrevistadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.