Menina que engravidou após estupro teve que sair do ES para fazer aborto legal

Na porta do hospital, grupo contra o aborto causa tumulto e gera protesto de mulheres que defendem o procedimento

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São Paulo

A menina capixaba de dez anos de idade que engravidou após ter sido estuprada e teve o aborto autorizado pela Justiça precisou sair de seu estado porque o hospital procurado por ela em Vitória se negou a fazer o procedimento legal com urgência.

Acompanhada da avó e de uma assistente social do governo capixaba, a garota saiu de Vitória neste domingo (16) e seguiu para um complexo hospitalar do Recife (PE), onde iniciou os procedimentos para interromper a gestação indesejada.

A violência contra a menina de São Mateus, cidade a 218 km de Vitória, ganhou repercussão nacional. Ela foi abusada sexualmente por quatro anos pelo marido de uma tia. O homem, de 33 anos, foi indiciado pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável e está foragido desde que o caso veio à tona.

A viagem, realizada em um avião comercial, deveria ter ocorrido de forma sigilosa, mas foi divulgada nas redes sociais de conservadores. A bolsonarista Sara Winter chegou a publicar o nome da vítima, contrariando o que preconiza o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

A chegada da menina causou protestos pró e contra o aborto em frente ao hospital do Recife na tarde deste domingo. Grupos cristãos fizeram rodas de oração, e médicos do hospital foram chamados de “assassinos”. O tumulto só terminou após intervenção da Polícia Militar.

A Folha apurou que a menina esteve no Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo após o juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus, conceder o direito ao aborto na última sexta-feira (14).

No seu despacho, o magistrado reproduziu o desespero da garota quando era atendida por uma assistente social. Ao ser informada pela profissional que estava grávida, a menina “entra em profundo sofrimento, grita, chora e afirma não querer levar a gravidez adiante”, escreve o juiz.

Fernandes disse que respeitou a vontade da menina amparado também por manifestação em favor do aborto defendida pelo Ministério Público do Espírito Santo.

No hospital escolhido, a menina passou por exames. A equipe médica detectou que ela estava com 22 semanas e quatro dias de gestação –um período considerado avançado, mas sem nenhum impedimento clínico ou legal.

O hospital não iniciou os procedimentos para a indução do aborto e simplesmente pediu que a criança retornasse nesta semana para uma nova reavaliação, mas ela desenvolveu diabetes gestacional e corre risco de morrer. Se seguir grávida, pode contrair outras complicações clínicas, como pressão alta e fissuras no útero, que colocarão sua vida ainda mais em risco.

O Hucam foi questionado pela Folha sobre a postergação do atendimento dado à criança, mas o hospital não se manifestou. A unidade também deve ser questionada na Justiça, porque é suspeita de vazar informações do prontuário médico da menina.

A Corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) também abriu investigação para apurar se a Justiça do Espírito Santo resguardou os direitos da criança durante a condução do processo.

Especialistas em direito afirmam que não há um período limite para se fazer um aborto autorizado pela Justiça. Ainda mais, quando a mulher corre risco de morrer.

No Brasil, a Justiça não pune três tipos de aborto: por estupro, quando o feto é anencéfalo (sem cérebro) e quando a mãe corre risco de morrer. O caso da menina se enquadra em dois desses fatores.

“O que vemos no caso dessa menina é que o hospital pode ter optado por uma prática comum de violência, que é a postergação da gravidez para conseguir salvar o feto. Não se pensou na menina”, diz a advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski.

Barwinski coordena no Brasil o Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, entidade que vem denunciando em todo o mundo esse tipo de prática clínica. “Gravidez e maternidade forçadas se equivalem à tortura”, diz a especialista.

Quando procurou pela primeira vez um hospital ainda em São Mateus, no dia 7 deste mês, a menina estava com 21 semanas de gestação, diz Barwinski. “Esse caso começou errado desde o início. A menina deveria ter sido atendida lá mesmo em São Mateus. Qualquer ginecologista e obstetra estão preparados para fazer esse tipo de procedimento."

Mas a menina, assim que foi liberada do hospital, seguiu para um abrigo de crianças vulneráveis em Vitória.

Segundo a ginecologista Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), a literatura médica já mostrou que a indução do aborto na idade gestacional em que a menina se encontra é quatro vezes mais segura do que o parto vaginal.

A menina começou os procedimentos de aborto ainda neste domingo mesmo no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), hospital referência no atendimento à saúde da mulher.

A Folha não conseguiu apurar se o procedimento foi concluído. Segundo Paro, o aborto pode durar até 24h ou mais dependendo do estado clínico da paciente e dos efeitos da medicação utilizada.

Antes da violência sexual à que foi submetida, a menina já tinha sofrido a morte precoce da mãe e ausência do pai, que está preso.

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