Oito em cada dez presos em flagrante no Rio são negros, mostra estudo da Defensoria

Percentual de custodiados que relatam ter sofrido agressões no momento da prisão também é maior entre pretos e pardos

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Rio de Janeiro

Levantamento da Defensoria Pública do Rio divulgado nesta quarta-feira (5) revela novas evidências de que a questão racial ainda tem impacto significativo na seletividade do cumprimento da lei penal e no sistema de Justiça criminal.

Segundo o estudo, cerca de 80% dos presos em flagrante no estado se autodeclaram pretos ou pardos.

A pesquisa foi realizada de setembro de 2017 a setembro de 2019, com base em entrevistas feitas pela Defensoria com 23.497 pessoas que passaram pelas audiências de custódia no Rio de Janeiro.

Essas audiências foram implementadas há cerca de cinco anos, com dois objetivos principais: permitir que um juiz analise rapidamente a necessidade e a legalidade da prisão em flagrante e comunicar eventuais ocorrências de tortura.

O levantamento da Defensoria também indica que pretos e pardos relataram mais vezes terem sido vítimas de agressões no momento da prisão. As agressões foram confirmadas por 40% dos negros, em comparação com 34,5% dos brancos.

A Polícia Militar foi o agente da agressão em 60% dos casos com informação. Em seguida, aparecem populares, responsáveis por 30% dos casos, o que indica uma importante presença dos linchamentos.

Para a defensora Caroline Tassara, coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria, os dados escancaram o racismo estrutural da sociedade, que se apresenta "na sua forma mais cruel" no direito penal.

"Por que um policial olha um rapaz preto parado na calçada da periferia e se sente no direito de revistá-lo? Me pergunto se esse mesmo policial, vendo um jovem branco na calçada da zona sul do Rio, identificaria a mesma postura como suspeita, e o revistaria. Isso jamais aconteceria."

Tassara afirma que as revelações do estudo já são percebidas nos presídios, mas que os números têm grande relevância e precisam ser debatidos. "Se nós entrarmos numa unidade prisional, percebemos que os nossos presídios têm cor, têm um perfil bem delimitado. Essa pesquisa traz esse recorte para o momento da prisão", diz.

Entre os entrevistados, 93% são homens, 64% têm apenas o ensino fundamental, 62% ganhavam um salário mínimo ou menos quando foram presos e 89% têm entre 18 e 40 anos. Quanto à infração cometida, 37% dos custodiados respondem por crimes da Lei de Drogas, seguido por roubo (26%) e furto (19%).

Apesar de quase 40% dos entrevistados terem relatado que foram vítimas de agressões ou tortura, em menos de 1% dos casos houve o relaxamento da prisão. Segundo o estudo, 70% das prisões em flagrante foram convertidas em prisões preventivas.

O relaxamento é determinado pelos juízes quando a prisão em flagrante é ilegal. Segundo o artigo 5° da Constituição Federal, "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".

"Isso mostra o quanto ainda há de resistência no próprio Poder Judiciário em reconhecer a ilegalidade da atuação policial", afirma a defensora Caroline Tassara.

A Lei da Tortura, sancionada em 1997 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, define tortura como o constrangimento de alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação; provocar ação ou omissão de natureza criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa.

Também se considera tortura a submissão de alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental.

Para o pesquisador Felipe Freitas, doutor em direito penal pela Universidade de Brasília, a validação de flagrantes duvidosos pela Justiça perpetua a continuidade de práticas violentas da Polícia Militar.

"A Constituição é clara. Se há abuso, a prisão deve ser imediatamente relaxada. Se há tortura, maus tratos, os flagrantes precisam ser anulados. No melhor dos casos, o Poder Judiciário abre procedimento para apurar a conduta policial, mas mantém no processo o produto de uma ação abusiva da polícia", diz.

Freitas afirma que por muito tempo foi debatida a necessidade de responsabilizar os policiais por práticas violentas, sem sucesso. Para ele, é preciso ir além e conseguir a anulação do produto desses abusos.

"Todas as evidências apontam para a existência de uma desigualdade racial. Os juízes operam como se isso não existisse, e isso faz com que a desigualdade se perpetue. Precisamos superar essa validação automática da narrativa policial, sair do julgamento de pessoas e julgar as condutas."

O pesquisador ressalta que as audiências de custódia ainda podem avançar em termos da apuração de torturas, mas que têm papel importante por oferecer uma oportunidade para que o Poder Judiciário aprecie a legalidade da prisão em flagrante.

"Não era incomum que houvesse casos de pessoas presas que passavam longos períodos sem contato com uma autoridade judicial. Isso perpetuava prisões ilegais e flagrantes absolutamente nulos", diz.

De maio a setembro de 2019 houve uma redução de 23% dos relatos de tortura feitos pelos entrevistados à Defensoria, em comparação ao mesmo período de 2018.

A defensora Caroline Tassara afirma considerar que essa diminuição reflete uma mudança na conduta dos policiais, diante da adoção das audiências de custódia.

"A partir do momento que eles têm ciência de que toda pessoa será apresentada ao juiz, começamos a perceber uma mudança de cultura na atuação dos policiais. Se torturar, se agredir, será perguntado no dia seguinte sobre isso. Isso comprova a efetividade das audiências de custódia como instrumento de prevenção e de combate à tortura", diz.

Freitas ressalta que o mecanismo ainda precisa ser aperfeiçoado, a partir da estruturação de setores de perícia mais qualificados para subsidiar a apuração das denúncias de maus tratos, da adoção de uma escuta mais qualificada por parte dos juízes e da criação de programas de proteção para que o custodiado não seja vítima de retaliação.

"Os juízes precisam ser mais rigorosos com a observação de indícios de tortura, presentes na audiência, que muitas vezes não são verbalizados pela pessoa que foi vítima de violência. É um dos poucos momentos no sistema de Justiça em que o juiz pode sair da posição de inércia, já que normalmente só age quando provocado, e garantir uma investigação qualificada de eventuais ilegalidades."​

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