PM do AM é acusada de tortura e outros abusos por ribeirinhos

Ação tenta localizar assassinos de dois policiais

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Manaus e Brasilândia (MS)

O Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas denunciou nesta quinta-feira (6) abusos e violações dos direitos humanos cometidos pela Polícia Militar do estado. Em ofício enviado a autoridades em Brasília, há relatos de invasão de domicílio, condução ilegal, agressão e tortura de uma liderança ribeirinha.

Os abusos teriam sido cometidos durante operação policial nos Projetos de Assentamento Agroextrativistas Abacaxis 1 e 2, às margens do rio com o mesmo nome, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, sul do Amazonas. A área também é habitada por indígenas do povo maraguá.

A pedido do MPF e da Defensoria Pública da União, a juíza federal Raffaela Cassia de Souza determinou nesta sexta-feira que a Polícia Federal envie um efetivo à região “em face dos potenciais abusos e ilegalidade relatados”.

A magistrada também decidiu que o estado do Amazonas “se abstenha imediatamente impedir a circulação dos povos indígenas e ribeirinhos na região, sob pena de multa diária de R$ 100 mil”.

A lancha Arafat, que participou de pescaria ilegal e foi usada em operação policial no rio Abacaxis; trata-se de um barco branco, está num rio de águas marrons
A lancha Arafat, que participou de pescaria ilegal e foi usada em operação policial no rio Abacaxis - Divulgação Anera

Trata-se de uma resposta à morte de dois PMs durante ação no rio Abacaxis, na segunda (3). Segundo a Secretaria de Segurança Pública, eles foram baleados durante um confronto com traficantes. Outros dois policiais militares ficaram feridos.

No dia seguinte, a secretaria enviou para a região um reforço de 50 policiais militares liderados pelo comandante-geral da Polícia Militar, Ayrton Norte. Foi quando começaram as denúncias de abusos policiais contra os ribeirinhos.

Um dos relatos, ainda não confirmado, afirma que cinco pessoas da região teriam sido mortas pela PM.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) confirmou apenas um óbito durante a operação no rio Abacaxis. Em nota, disse se tratar de Eligelson de Souza da Silva, 20. Segundo a SSP, ele atirou contra os policiais, que revidaram. De acordo com a polícia, com ele foi apreendido um revólver calibre 38.

A SSP informou ainda que investigações na região do rio Abacaxis apontaram “indícios dos crimes de tráfico de drogas e formação de milícia armada” naquela área. De acordo com o órgão, não foi apreendido nenhum entorpecente nem armamento pesado até agora, durante a operação; tampouco há presos.

Ao MPF os moradores relataram que os PMs apontaram armas de fogo para os moradores, incluindo crianças e idosos, e apreenderam celulares de quem estava gravando a ação.

Os policiais militares também teriam realizado condução ilegal e tortura contra o presidente da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera), Natanael Campos da Silva. Ele teria sido detido e liberado horas depois, com vários hematomas de agressão pelo corpo e pelo rosto.

Silva teria sido agredido e torturado por policiais militares na presença do comandante-geral, Ayrton Norte, em duas ocasiões. Primeiro, dentro de um dos apartamentos do Hotel Jardim Paiva, em Nova Olinda do Norte, onde os militares estavam hospedados, e depois na lancha particular Arafat, que estava sendo utilizada pelos policiais durante a ação.

As agressões teriam incluído socos no estômago e no rosto, asfixia por saco plástico, além de ameaças contínuas de morte.

Segundo Silva, ele foi chamado ao hotel para ajudar nas investigações, mas ao chegar lá foi acusado, pelo comandante da PM, Ayrton Norte, de estar encobrindo os traficantes suspeitos de terem atirado nos policiais.

“Depois me levaram pra um lugar mais afastado e começaram a me bater. Eram uns dez policiais e o comandante lá, assistindo. Pararam um pouco, depois teve outra sessão numa lancha chamada Arafat. Meteram um saco plástico na minha cabeça e me perguntavam quantas pessoas estavam envolvidas. Eles ficavam falando que eu não ia escapar”, disse a liderança à Folha, por telefone. A detenção e a tortura teriam durado duas horas.

O MPF impetrou pedido de habeas corpus em favor de Natanael, para evitar que ele seja submetido a nova sessão de tortura pelos policiais, uma vez que a operação está em andamento, e recomendou que a Polícia Federal (PF) passe a investigar a atuação dos PMs na área, que é de responsabilidade federal, por reunir territórios de assentamentos federais, a Floresta Nacional (Flona) Pau Rosa e ocupados por indígenas da etnia maraguá.

Pescaria ilegal

De acordo com o MPF, os conflitos no rio Abacaxis foram provocados por uma pescaria esportiva sem licença ambiental com a participação do secretário-executivo do Fundo de Proteção Social (FPS) do governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende, dentro de uma área de proteção federal de uso tradicional de povos indígenas e ribeirinhos, em plena pandemia de Covid-19, no dia 23 de julho.

Os ribeirinhos e indígenas relataram ao MPF que duas embarcações, de nome Dona Dorva e Arafat (esta sendo a lancha usada pelos PMs na operação policial), entraram sem autorização na área da reserva com pescadores a bordo e foram impedidas de ficar no local pelos moradores.

A versão dos pescadores, entre eles o secretário-executivo do FPS, foi outra. Em depoimento à polícia e entrevistas à imprensa local, eles sustentam a versão de que comunitários, após impedirem a entrada deles no rio, tentaram roubá-los e atiraram contra eles, atingindo o ombro de Rezende, que chegou a fazer um boletim de ocorrência em Manaus.

Cerca de uma semana depois, aconteceu a primeira operação no rio Abacaxis, com o envio de 21 policiais de Manaus. Além de pesca ilegal, a região é palco de garimpo e tráfico de drogas.

A região, que é de mata fechada e bastante extensa, já havia sido alvo de uma operação de repressão ao tráfico, com órgãos federais, há cinco anos. O avanço do tráfico de drogas na região, no entanto, não provocou novas operações policiais no rio Abacaxis nos últimos anos.

Essa ação foi motivada, segundo a própria SSP, pelo disparo de arma de fogo contra Rezende. Ainda de acordo com o órgão, o secretário declarou, no BO que fez, que a embarcação em que estava fora abordada por “indivíduos com armas de fogo, faca e tochas de fogo” antes de ser alvo de disparos.

A SSP, no entanto, não forneceu informações sobre exame de corpo de delito ou perícia na embarcação que confirmem a versão de Rezende. A secretaria justificou as diligências de policiais à paisana e usando a lancha dos pescadores expulsos da área de proteção como “trabalho de forma velada”.

“No fim da tarde, [os policiais] retornaram devidamente uniformizados e foram emboscados por membros do grupo criminoso”, disse a SSP. O órgão não esclareceu se Natanael Campos da Silva, que relatou ter sido detido e torturado pela polícia, fazia parte do suposto grupo criminoso.

Por fim, a SSP informou que não recebeu denúncias de abusos policiais e que casos suspeitos devem ser denunciados à Corregedoria Geral do Sistema de Segurança do Amazonas.

O ofício do MPF do Amazonas foi enviado para 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria, que lida com questões indígenas, para a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) e para o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Renan de Oliveira.

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