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Policial apontou arma para mim quando eu tinha filho no colo, diz mestre de capoeira

Valdenir Alves dos Santos, o mestre Nenê, afirma que foi alvo de abordagem truculenta da PM de SP

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São Paulo

Valdenir Alves dos Santos, 45, conhecido como mestre de capoeira Nenê, morou na rua por oito anos. Aos finais de semana jogava capoeira. Foi aprendiz do finado mestre Ananias (1924-2016). Agora mestre ele próprio, mora próximo à favela do Mangue, escondida atrás dos prédios altos da Vila Madalena, bairro da zona oeste de São Paulo.

Mestre Nenê é negro. Ele foi abordado pela polícia em frente a sua casa. Teve armas apontadas para ele e para o filho de cinco anos. Perdeu a consciência quando, ainda com o filho a tiracolo, recebeu um mata-leão de um policial, prática proibida desde o último dia 31 de julho.

Mestre Nenê foi, estrangulado, algemado e humilhado. Os PMs ainda o levaram a um hospital onde uma mulher, que se dizia médica psiquiatra, ameaçou dar-lhe uma injeção de algo que o acalmaria
Mestre Nenê foi, estrangulado, algemado e humilhado. Os PMs ainda o levaram a um hospital onde uma mulher, que se dizia médica psiquiatra, ameaçou dar-lhe uma injeção de algo que o acalmaria - Marlene Bergamo/Folhapress

Com voz suave, descalço e rodeado por amigos, uma galinha chamada Trovoada e dois saguis, ele contou à Folha sobre os eventos do último dia 19 de agosto.

*

Eu estava na frente de casa, tinha ido levar uma tesoura para o meu amigo que mora do outro lado da rua. Ele queria cortar os pelos dos seus dois cachorros. As crianças estavam brincando e a gente ia bebendo uma cerveja. Umas 18h30 a rua encheu de polícia. Estávamos em cinco homens, quatro crianças, cinco cachorros e uma tesoura [sorri].

Eles me abordaram às 19h45. E meu filho, ele é muito esperto, pulou no meu colo quando a viatura fez um movimento brusco. Um policial desceu e apontou a arma para mim, mas meu filho estava no meu colo. Era a primeira pessoa na linha de tiro.

Eu dei as costas para a arma. O policial começou a gritar, puxou minha blusa e a rasgou. Fui empurrado, mas não caí porque segurei num pilar de madeira. Eu senti me chutarem nas pernas. Eu só estava tentando proteger o meu filho. Em nenhum momento disseram por que estavam fazendo aquilo.

Cinco ou seis policiais tentavam me derrubar. O maior deles me deu um mata-leão. Eu ia caindo, mas ainda estava com meu filho no colo. Consegui abaixar e quando senti que ia desmaiar escutei meu filho dizer "pode soltar, meu pai" e eu soltei. E então apaguei.

Durante a agressão, sua calça de capoeirista arrebentou e, por diversas vezes, Mestre Nenê ficou de cueca diante das pessoas —por estar algemado, ele não podia suspender a roupa e se cobrir
Durante a agressão, sua calça de capoeirista arrebentou e, por diversas vezes, Mestre Nenê ficou de cueca diante das pessoas —por estar algemado, ele não podia suspender a roupa e se cobrir - Marlene Bergamo/Folhapress

Quando me dei conta, estava algemado e alguém me chutava. Eu queria era saber do meu filho. Eles me puxaram para a viatura pelas algemas, estava muito apertado. Quando me colocaram na viatura eu apaguei de novo.

Acordei no pronto-socorro. Mas antes disso eles me levaram para a 14º DP de Pinheiros. A Stephania, mãe do meu filho, foi quem disse que me levaram para lá e me deixaram o tempo todo no carro, desacordado.

Quando acordei estava na viatura, meio atrás de uma ambulância, como se estivessem me escondendo. Ouvi um aluno meu perguntar ao policial onde eu estava e ele responder que eu já estava dentro do hospital. Ao ouvir isso eu gritei de dentro da viatura.

A mãe do meu filho chegou desesperada. Eu dei três cabeçadas no vidro da viatura e disse que estava muito apertada a algema. Chamaram uma psiquiatra para avaliar. Eu não sinto essa parte da mão [aponta para os dedos mindinho e anelar da mão direita]. A psiquiatra disse que estavam mesmo muito apertadas e eles soltaram um pouco antes de abrirem a viatura. Perguntaram se eu queria ajuda para sair, mas eu disse que saía só.

Entrei no hospital empurrado, sem máscara e só de cueca, porque minha calça estourou quando me puxaram. A mãe do meu filho tirou a própria máscara e colocou em mim.

A psiquiatra me perguntou o que eu estava fazendo ali. Perguntei aos policiais, mas acho que não sabiam.

Uma enfermeira apareceu com duas injeções para aplicar em mim, mas não deixei. Minha esposa também não. E a psiquiatra disse que eu a estava desrespeitando. Eu pedi um clínico geral para me avaliar, mas não apareceu mais ninguém e no laudo consta que eu recusei atendimento.

Me levaram de volta para a delegacia. Fiquei algemado o tempo todo. Disseram que era o procedimento. Na delegacia uma policial me filmava, meio de canto.

Desde o mata-leão não consigo engolir direito. Minha garganta está inflamada. Quando fui no IML (Instituto Médico Legal), perguntei ao legista se ele não examinaria minha garganta, ele olhou e disse que não tinha nada de errado. No dia seguinte [20 de agosto], eu cuspi sangue pela manhã.

Antes do legista, haviam me levado para a sala do delegado. Ele me perguntou o que eu estava fazendo lá e eu devolvi a pergunta: "o que eu estou fazendo aqui?". Ele disse que eu o estava desrespeitando.

No fim, ele escreveu um termo e eu deveria assinar, caso concordasse. Concordei e assinei. Só depois disso que a minha advogada chegou e então me ofereceram água, café e um lugar para sentar.

Chegou também o camarada que eles estavam procurando. Ele confessou. Não parecia nada comigo. Era um rapaz negro, magrinho, alto e careca.

O delegado não sabia o que fazer. Ele e o escrivão diziam que até eles já tinham sido abordados indevidamente. Eu disse que não tinha nada a ver com isso. Eu queria saber de mim. Meu filho está traumatizado [ri e então volta a ficar sério]. A gente ri mas não está rindo de verdade, né?

Os policiais buscavam um ladrão cuja descrição era: jovem, roupa escura e carregando uma bag do Ifood. A única semelhança entre o suspeito e o mestre de capoeira é a cor de pele
Os policiais buscavam um ladrão cuja descrição era: jovem, roupa escura e carregando uma bag do Ifood. A única semelhança entre o suspeito e o mestre de capoeira é a cor de pele - Marlene Bergamo/Folhapress

Parece que naquele dia todo mundo estava afetado por uma síndrome militarista. Todo mundo me tratou mal. Desde esse dia eu não consigo dormir.

Passou um dia e meu filho, que normalmente acorda às 10h, já estava de pé às 6h. Outro dia, quando fui abrir o portão, ele me perguntou aonde eu ia. Quando respondi ele perguntou: "mas e se entrar polícia?".

Ele não queria mais sair, estava com medo. Quando fomos depor, perguntou o que faríamos se no local houvesse mais policiais do que gente da nossa irmandade. Ele tem cinco anos, mas já criou um conflito na cabeça dele. Nós não queremos combater ninguém. A gente quer viver e ser feliz.

Eu classifico essa situação como perseguição por causa do trabalho da nossa comunidade. Porque antes de o Lula ser preso, a nossa irmandade fazia a segurança dele. A sensação é de que eles vieram sabendo quem iam pegar. Acredito que tenha sido perseguição e racismo.

Havia um outro rapaz, mais claro, que passa por branco, ele pôde entrar com os filhos [em casa] e eu não. Além disso, no meu B.O., me colocaram como branco. Disseram que foi um erro. O delegado se negou a retirar e perguntou se eu tinha certeza de que queria mudar. Eu respondi que sim.

Eu não sou uma pessoa de sentir raiva, mas estava sentado aqui [aponta para um banco ao seu lado] e identifiquei. Eu sentia raiva.

Secretaria afirma que PM agiu para evitar que ele deixasse local

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública, da gestão João Doria (PSDB) afirma que os policiais do 23º Batalhão da PM foram acionados para uma ocorrência de roubo de celulares e notebook, na Vila Madalena, e que o sinal de localização do celular acusava estar na Rua Fidalga.

“Durante diligências, os agentes encontraram quatro homens parados próximos ao local indicado pelo sinal de localização do celular. Ao iniciar a abordagem, um dos indivíduos desobedeceu a determinação legal e tentou deixar o local, resistindo à ação dos policiais, que precisaram contê-lo”, diz a nota.

Segundo a pasta, enquanto isso, o autor do roubo foi preso na mesma rua, “o que reforça a suspeita fundamentada dos agentes para a realização de abordagem naquele local”.
O caso é investigado no 14º DP. Segundo a nota, a Polícia Militar também abriu investigação e apura o ocorrido.

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